17.3.18

Diário de Bordos - Port d'Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-03-2018

"Por que palavra começar, por que desordem?"

Deve ser por causa de dias assim que um gajo é incapaz de "assentar" (como dizia a minha Mãe. Eu prefiro "sedentarizar". É mais chic, menos maternal). Isto é, não se iludam: esta tarde entrou badanal outra vez, descobri mais uma ferida grave no meu bem-amado galgo, S/Y P. que bem as dispensa, coitado e ainda não defini o meu espaço a bordo: mal o último tripulante se foi embora mergulhei (literalmente) nos fundos do coiso e mal saí deles. 

Mas vejam: hoje pus os paneiros, restabeleci a água, fiz as primeiras limpezas e cozinhei a primeira refeição a bordo; posso finalmente ouvir música no computador; reflecti sobre as feridas do bicho, fiz alguns telefonemas, segunda-feira vou ter respostas. 

Há alguma profissão que ofereça dias assim? Se há, por favor digam-me qual. Ainda vou a tempo de mudar.

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O jantar foi simples: carne picada marinada em cerveja, refogada com cebola, inundada de tomate frito (em itálico porque é assim que vem escrito no frasco, é espanhol), com malaguetas e pepino, a cozer durante quase uma hora. Por inacreditável que pareça ficou bem, culpa do tomate e das malaguetas.

Depois apareceu o velho dilema: saio ou fico? O barco estava sobreaquecido, não tenho net a bordo (nem licor de hierbas) e ganhou o bom senso: vim ao meu bar da noite, o melhor lugar de Port d'Andratx, com um nome de filme: Maria Maria. É grande e a esta hora está vazio, as doses de hierbas são mais do que decentes (não posso dizer que são grandes, ainda vai um deles ler isto e diminuí-las).

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Estou sozinho a bordo. O trabalho foi um bocado chato, vencia bem mais um par de mãos. Mas a verdade é que hoje foi um dia do caraças, uma vez tudo montado e a funcionar.

Tenho uma relação ambígua com a solidão, essa é que é essa. Gosto demasiado de estar sozinho para suportar companhia o tempo todo; e de partilhar para gostar de estar sozinho. Mas os marinheiros são os reis da ambivalência, não é? Só um esquizofrénico sabe que nada é e ao mesmo tempo que se safará, aconteça o que acontecer. E que só os imbecis não têm medo, mas ele medo não tem, apesar de não ser imbecil. Só um marinheiro é capaz de se apaixonar perdidamente na Rússia e chegar às Filipinas uma semana depois e apaixonar-se outra vez (se bem não tanto como na Rússia); um marinheiro é um gajo que é tudo e nada é. "Há três espécies de seres: os vivos, os mortos e os marinheiros". Nunca me lembro do nome do grego que escreveu isto (era um pré-socrático, se por acaso) mas estava podre de razão. Com uma diferença: a nossa morte é mais viva do que muitas vidas.

Um marinheiro morto está mais vivo do que muita gente viva? Não sei. Talvez. Seja como for, acho que um dia conseguirei sedentarizar-me. Num cemitério qualquer, ou melhor ainda: embrulhado numa lona borda fora.

Infelizmente amo demasiado a vida para pensar muito tempo nisso.

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