12.5.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-05-2018

"Se fizeres aquilo de que gostas nunca trabalharás". É mentira, jovens. Não acreditem. Fazer aquilo de que se gosta é trabalhar.

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Suponho que isto acontece a todos os que têm uma vida parecida com a minha: um dia chega em que um gajo se apercebe de que faz parte do sítio onde está. Quero dizer, não me interpretem mal: sei perfeitamente que ainda agora aqui cheguei e que não tarda me vou embora. Mas de repente é isto: cheguei. É uma chegada temporária, mas é uma chegada e até me ir embora é aqui que estou, é daqui que sou.

Não tem nada a ver com a mojo hand. É outra coisa. Como se um meteorito um dia andasse às voltas de um planeta e por lá ficasse até lhe reconhecer as montanhas e os vales, os rios e os oceanos. Ou pelo menos percebesse onde estão. Ou um nómada que chega a um oásis desconhecido e começa a conhecê-lo e um dia sabe que na verdade sempre esteve ali porque aprendeu a ver o que todos os oásis têm de semelhante e de diferente.

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"There's a shoulder / where death comes to cry", canta Leonard Cohen no you coiso. Penso outra coisa: "Há um ombro onde a vida se vem encostar para descansar" e esse ombro é o meu.

Acolho-a, saciado e ela agradece-me: "fazer o que se gosta não é trabalhar".

É pior. É uma prisão sem barras nas janelas nem guardas armados no pátio. Uma das formas do amor. Uma das formas da plenitude.

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Há pessoas que não gostam da indústria farmacêutica. Eu gosto. A guerra entre a diabetes e a vida está ganha pela vida graças a um comprimido que tomo duas vezes por dia. Não foi fácil decidir-me - as boas decisões nunca são fáceis nem evidentes - mas a indústria química (de que a farmácia é uma parte, tal como os fabricantes de vinho e outras bebidas) tem aqui um admirador reconhecido.

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Comprei o Diário de Alejandra Pizarnik na Babel à tarde e agora acabei a garrafa de Kuei Hua Chen Chiew, um produto da indústria química chinesa. Não há relação nenhuma entre os dois factos, de resto separados por um grande lapso de tempo.

A única coisa que os une é a sequência cronológica agora: o Arvo Pärt que me perdoe, mas vou deixá-lo pela Pizarnik. Os pedaços que li no autocarro mais do que justificam a troca, por difícil que seja (e é). O ideal seria poder ouvir o Part e ler a Pizanik ao mesmo tempo, mas ainda não é hoje.

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Poderia talvez imaginar-se uma fisga gigante, com a capacidade de atirar pedras para lá da força gravitacional da Terra. Põe-se uma pedra nessa fisga e ela parte não se sabe bem para onde (de propósito, a fisga não foi apontada para lado nenhum em especial).


Essa pedra acabará por aterrar num sítio qualquer do Universo, não é? Que tenha sido ela a escolhê-lo ou não é irrelevante.

A música de Arvo Pärt (juntamente com a de Hildegarde von Bingen, Rachmaninov, Mahler e mais dois ou três) descreve ou pelo menos acompanha a viagem da pedra.

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O amor é o único poço no qual se cai tanto por vontade como por gravidade. Tem uma vantagem: é uma queda boa. E uma desvantagem: o poço não tem fundo.

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