29.11.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-11-2018

Por exemplo. Conto isto para mim, confesso: tentar ver claro através desta névoa. A sapata do pé do mastro estava apoiada nuns blocos de chumbo que me impediam o acesso aos fundos. Não os queria ali por três razões: a) Não tinha acesso aos fundos; b) não queria quinhentos quilos (como se veio a verificar mais tarde) de chumbo numa superfície de menos de meio metro quadrado, mesmo que apoiados em Chockfast, como estavam; c) não gosto de carregar pesos inúteis.

Perguntei ao arquitecto, ele disse-me que o chumbo estava ali para rating e não para estabilidade (coisa de que depois duvidou, mas demasiado tarde). Tirei-o e vendi-o, tudo no mesmo dia. Há coisas mais difíceis do que vender quinhentos quilos de chumbo. Agora, claro, é preciso um apoio para a sapata. Na minha cabeça era fácil: duas peças de alumínio e hey, presto, ecco, signore. O A.  (rigger) viu aquilo e pensou exactamente a mesma coisa. Uma vez as nossas duas brilhantes mentes juntas e a cantar em uníssono chamei o J. (surveyor). Afinal tratava-se simplesmente de validar a opinião de duas mentes brilhantes, não é?

Não. O J. disse que não queria alumínio ali; queria fibra de vidro. A posteriori é forçoso reconhecer que o J. não tem só razão de um ponto de vista físico - não quer mais parafusos nas cavernas - mas também que a sua solução é infinitamente mais elegante, mais bonita, mais mais do que a das tais duas brilhantes mentes.

Contado assim parece simples: em vez de se fazer os acrescentos em alumínio (marítimo, ça va de soi, mas isso encontra-se) faz-se as bases em fibra e hey, presto, ecco, signore. Bem, não. O homem que conheço para fazer o trabalho começou por dizer que estava muito apertado em tempo mas que sim, poderia vir fazer o serviço. Depois que estava muito apertado em tempo e faria a maior parte da coisa na sua oficina; hoje disse-me que nada, niente, nix, não tem tempo, não pode, está infinitamente sorry.

Amanhã vem outro, sugerido pelo J. Mas para a semana há montes de feriados e pontes e mai-los raios que os partam a todos. Entretanto continuamos - graças à chuva dos últimos dias e ao facto de o I. estar a lixar (literalmente) o interior para depois o pintar - a descobrir que ainda há montes de pequenas entradas de água (a que os franceses chamam fuites, nome muito mais adequado. O lugar da água é no exterior, não no interior). É que não páram.

Entretanto agora os riggers já têm as peças todas e continuam tranquilamente o seu (deles) trabalho, sabendo que enquanto a sapata não tiver apoio eles têm uma apólice de seguro do tamanho do mundo.

E é assim. Não sei como é nas outras, a minha experiência de gestão de projectos está limitada à área náutica: navios (dois product carriers na Rússia de Gorbatchev primeiro e Ieltsin depois) e várias embarcações de vela. É sempre igual: os factores que não controlamos são infinitamente mais do que os que controlamos e esta situação propaga-se aos nossos fornecedores e - obviamente - aos fornecedores dos nossos fornecedores. Junte-se-lhe as condições meteorológicas, a situação afectiva dos senhores (já tive um que não podia trabalhar porque ia para o Uruguai ver a namorada, depois não podia porque a namorada veio do Uruguai; outro não pôde fazer o trabalho no dia combinado porque lhe morreu o sogro - foi uma semana de atraso, entre o enterro do sogro e o apoio à sogra - e as coisas que se vão descobrindo porque se está a trabalhar... E o Natal está aí, eu aqui e vamos os dois encontrar-nos em Palma, disso já não há dúvidas.

Tudo isto quando eu pensava que já não havia mais surpresas, o stock estava de certeza esgotado. Não estava.  Nunca está.

Se calhar é por isso que este trabalho é uma droga (no bom sentido do termo).

...........
(Isto dito, uma coisa deste trabalho que mais uma vez me maravilhou: quando, depois de discutir com o A. - um senhor mais velho do que eu, primeiro rigger a trabalhar em Palma, homem de experiência e saber seguros - lhe disse que ia chamar o J. para validar as nossas conclusões a resposta foi: "Claro. Quanto mais opiniões melhor". Por sorte o surveyor podia vir a bordo, falámos os três e a evidência foi aceite sem qualquer espécie de resistência.

Não conheço muitas áreas de trabalho das quais a humildade seja o pilar principal.)

........
Hoje ha leitura de poesia no Antiquari. O tema é "a poesia sensual" (cito de memória).

Não há relação, eu sei.

... Não? A sério?

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.