2.1.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-01-2019

Fui ao dentista, onde passei uma hora; tenho de comprar camisas e estou a fazer um chili con carne que não vai ficar grande coisa porque não conheço bem as especiarias; reservei a noite para pensar e em vez disso estou a beber vinho e a ouvir música enquanto o chili coze. Verdade seja dita: pensar não é incompatível com beber vinho e ouvir música, se forem bons. Estes são: o Davida é simultaneamente bom, ecológico, sem sulfitos e barato (alguém conseguiu a quadratura do círculo) e as Drinking Songs de Purcell pelo Deller Consort são... bem, do Purcell e canções de taberna. Às vezes é um bocado lacrimoso de mais, mas o conjunto é bom. O dentista já passou; uma hora durante a qual a senhora escarafunchou um dente e eu pensei em todos os dentistas por onde já estive: Nakhodka, Cape Town, Cape Town outra vez (ou terá sido Pretória?) Almirante (Panamá), Brasil e Portugal, claro; não sei se mais algum. Depois interroguei-me sobre os sacrifícios comparados do dentista e de comprar camisas. Ganhou aquele, porque é mais frequente: a média de idade das minhas camisas deve rondar os doze ou treze anos, isto contando com a que comprei em Atenas há dois anos e com a que o meu primo me deu há não sei quanto tempo, mas pouco. Se bem uma vez passei doze anos sem ir ao dentista; mas foi só uma vez.

Ou seja: não sei se poderei qualificar este dia como "um sucesso!" (imitar sotaque de tia de Cascais). O dentista em Nakhodka já aqui contei; o de Cape Town também: tinha bebido uma garrafa de whisky antes de ir para lá. Sentei-me e só tive tempo de lhe dizer duas coisas antes de cair num sono profundo: "Por favor veja-me essa cárie que me trataram na Rússia há um ano" e "tenho mais medo do dentista do que de um ciclone no mar".

Depois adormeci. O homem teve de me acordar quando acabou. "A sua cárie foi extremamente bem tratada" e "muito gostaria eu que todos os meus pacientes medrosos fossem como você". O do Panamá era caríssimo e ensinou-me a bocejar com água oxigenada para não ter dores, porque não lhe podia pagar o tratamento. Funciona às mil maravilhas. Já as camisas são uma seca. Não me apetece nada. (É verdade que estou um bocado farto de ver sempre as mesmas, mas isso é outra história).

As especiarias vêm de duas fontes diferentes, ambas sitas no Mercat de l'Olivar. A partir de agora vão ficar reduzidas a uma, um argentino arrogante (passe o pleonasmo) que tem as melhores especiarias que vi até hoje a sul de Marselha e a norte do Maghreb. Em Lisboa pode comprar-se especiarias correctas no Martim Moniz, mas a diferença entre uma especiaria correcta e uma boa é a que vai entre Marilyn Monroe e a vizinha do 1º dto. Com a notável excepção dos cominhos: o melhor que até hoje me passou o estreito foi o de S. Luís, num mercado cujo nome não recordo. mas sei onde é.

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A M. veio cá, tem um check in à uma da manhã. Ficámos um bom bocado à conversa na cozinha, enquanto o chili cozia (dá para tudo, um chili que coze). Perguntou-me se eu bebia água. Disse-lhe que não. Bebo muito café e quando navego com ingleses chá. De vez em quando bebo sumos, se as condições estão reunidas: laranjas e uma máquina para as espremer. De resto, só vinho; cerveja raramente; hierbas secas, vermute, Palos; rum; gin; vodka. Ontem bebi um Bénédictine, de que tanto gosto. É feito em Fécamp. É o licor menos doce do mundo. Ninguém me pode acusar de beber pouco. Nem de andar bêbedo mais do que o razoável, apresso-me a esclarecer.

É importante: um homem não deve embedar-se sem querer, por acaso, sem método e sem propósito.

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As canções de taberna do Purcell são boas, mas não chegam aos calcanhares das suas congéneres medievais. A diferença está em Deus, claro: na Idade Média estava em todo o lado. No séc. XVII já não. Só se pode desobedecer se houver a quem.

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M. tem aquela beleza tosca das paisanas holandesas e alemãs. É muito simpática, mas não lhe suporto o cão.
- Esse cão pensa que é humano.
- Sim. Pensa que é o meu namorado. 

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