21.1.19

Reedição - Isabel, uma continuação sem fim

Continuação sem fim (nada nunca tem fim, só princípio)

Encontrei a senhora no comboio. Ofereci-lhe um enorme ramo de flores. Ela não sabia que as flores não eram minhas: sou empregado de uma florista sem dinheiro, que me obriga a entregar as encomendas de metro, autocarro, comboio. Já lhe pedi uma bicicleta, ao menos, mas nem para isso a minha patroa tem dinheiro. Não sabe dizer que não a um cliente e quem perde é ela.

Pouco importa: vi a mulher no comboio. Apaixonei-me por ela imediatamente: nem demasiado bonita nem demasiado feia, o seu sentido de humor sobressaía no seu olhar como a marca de óculos de sol num rosto bronzeado. Dei-lhe as flores num gesto impulsivo: gostei dos cabelos despenteados, dos traços finos, do olhar trocista. Estávamos longe da próxima paragem; devia falar com ela. Não lhe disse nada. Nada. "Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores porque simpatizei com a sua cara; porque é bonita; porque as merece; porque oferecê-las me põe numa situação periclitante". Nada. Ou: "Algo em si atraiu estas flores, não fui eu que lhas dei". Talvez devesse ter-lhe dito: "Não fui eu: foi você que ofereceu a si própria estas flores por meu intermédio. Um pobre imbecil veio cá comprá-las hoje de manhã. Queria, disse-me, um bouquet "conservador". "Conservador", foi este o termo que empregou".

- Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores. Espero que goste delas. Se não gostar, não me diga, por favor. Prefiro a ignorância, sabe? É ela que me faz viver. Ou a esperança, são a mesma coisa.

O comboio parou. Era um desses comboios suburbanos, cheio de caixeiras de supermercado, vendedoras de roupa de marca, contabilistas e bêbados precoces. Saí sem a ver e só no cais me apercebi que ela também saíra. Tinha um andar desengonçado, como se quisesse ter uma perna mais curta que a outra. Levava as flores bem altas, visíveis e olhava em frente. Eu queria voltar para trás, ir buscar mais flores, refazer a encomenda original.

Claro que não: queria segui-la, ir para casa dela, deitá-la numa cama e apaixonar-me melhor. Nessa altura procurava desesperado uma mulher, se possível sem filhos, quarentona recente ou trintona tardia (gosto de mulheres mais velhas do que eu, sempre gostei), com sentido de humor e um aspecto geral, como dizer?, sensual. Objectivos esses inalcançáveis sem me apaixonar, claro. Por isso me apaixonava: por uma professora indiana entrevista à porta da universidade, por uma empregada ucraniana no café, pela secretária da pessoa com quem me iria encontrar para um emprego. Apaixonava-me a torto e a direito, mas nunca tinha oferecido flores - que ainda por cima não eram minhas -.

Enfim, acabei em casa dela, em pleno campo, numa cama enorme e ruidosa. Nesta ordem: primeiro ela, depois o campo, depois a casa, depois a cama, depois o ruído.

II
Quando voltei à florista dois ou três dias depois fui despedido, naturalmente; mas fiquei a viver com a Isabel, que era um emprego a tempo inteiro. De manhã dava de comer e beber aos numerosos animais que ela mantinha: um porquinho-da-índia, um coelho anão, dois cachorros, meia dúzia de caracóis e um gato; passeava os cachorros no jardim à frente de casa; comprava os legumes frescos para o dia no mercado biológico; passava o aspirador; fazia o almoço; lavava a loiça; dormia a sesta; passeava os cães; fazia o jantar. A todas essas tarefas me dedicava grato: tudo era melhor do que ter de oferecer flores no comboio à primeira senhora gira que encontrava.

Isabel não tinha uma perna mais pequena do que outra: tinha-as iguais, pequenas, bonitas, mas arqueadas. Montava a cavalo desde miúda, com a mesma energia e determinação com que me levara para casa. O cavalo, um alazão enorme, completo, chamava-se Red Promise e tinha uma potência ilimitada. Uma vez vi-o saltar um metro e sessenta parado. Parado. Nos concursos era um prazer vê-lo: arrancava num galope desenfreado para os obstáculos e quando parecia que ia levar tudo pela frente reduzia a velocidade e levantava vôo na vertical, como um helicóptero.

Era arquitecta, passava muito tempo em casa e longos períodos fora, porque tinha obras pela Europa toda. Não sei o que viu em mim, eterno aprendiz de fotógrafo e moço de recados de uma florista falida. Eu sei o que vi nela.

III
Nunca saberás, meu amor, quantas horas de metro, quantos quilómetros de vida, quantos olhares cruzados me levaram a ti.

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