12.2.19

Às escuras, ADN, dupla hélice

É sempre assim, não é?

Não. É sempre mais ou menos assim: deixamo-nos escorregar pela vida e deixamo-la escorregar por nós, como um miúdo escorrega num escorrega que é ele. Somos um, dois e muitos. Somos as palavras que fazemos e o que elas fazem de nós, dizem-nos para onde apontar o olhar porque para lá olhámos quando as dissemos. Talvez por isso o ADN seja uma dupla hélice: fazemos a vida que nos faz ser o que somos.

Talvez no fundo seja isto o amor: esta vontade de ser o outro e sermos nós, feitos pelo outro. Dupla hélice: tu e eu juntos e separados, enredados e livres, soma para sempre incompleta e para sempre única. O dia chegará em que diremos "Amo-te" e o eco não dirá "Tenho medo", em que diremos "Não tenhas medo, eu amo-te" a duas vozes.

Amor, medo: dupla hélice. Amor, vida: outra dupla hélice. O amor não se enrola em si próprio, precisa do outro. Amor: outro, vida, medo. Num pacote, foi assim que veio da loja. Amor, amo-te, temo-te, tenho-te, temo-me, vivo, vivo-te, vivo-me, vida. A hélice não é dupla: é múltipla, infinita. É o universo. Somos um universo.

Metade desse universo pensa em ti, como se tu o pensasses: processo borgesiano, biblioteca de espelhos, Alephes um do outro: contigo e por ti reifico o mundo que em mim recrias, que comigo recrias. Fazemos, refazemos: fazemo-nos, refazemo-nos fazendo e refazendo. Duas agulhas fazem uma camisola de lã. E duas vidas, que fazem? Que tecem?

Acontecem, como ontem e hoje fazem um amanhã que não é um nem outro, mas é um e outro. Uma vida vive-se a dois, duas vidas a um. O mesmo se poderia dizer da noite, de resto: uma noite faz-se a dois. Se não, não é noite: é o tempo a passar às escuras.

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