14.3.19

Fragmento (editado)

Bom, não faz mal. Imaginemos que eu queria escrever-te: de que te falaria? Não sei. Tudo é tão pouco importante, não é? O jantar foi delicioso, uma bratwurst na Wurst, um pouco de queijo na Cossoul, uma aguardente de pera na Wurst - outra vez - uma agradável pedalada até bordo. Nada de especial.

Quando cheguei, o barco estava demasiado quente. As minhas casas em terra estão sempre demasiado quentes porque gosto de andar nu, mas a verdade é que ambientes sobre-aquecidos me aborrecem. Há um equilíbrio difícil entre a nudez e o meio ambiente, culpa de evolução, sem dúvida. Não fez bem o seu trabalho, qualquer viajante o verifica facilmente: devíamos ter mais braços e mãos. (Curiosamente, os amantes chegam depressa à mesma conclusão, o que nos levaria a pensar nas semelhanças entre o amor e a viagem. Agustina, esse génio, percebeu-as bem. "Por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica", escreveu. Mas isso é demasiado redutor: o amor não se limita ao sexo e este não preenche o amor.)

De maneira escrevo-te sem querer e sem nada para dizer, coisa que de tão frequente deixou de me afligir. Pior, de resto, seria o contrário: quem tem algo a dizer nunca sabe se aqueles a quem o diz têm algo a ouvir.

Há bocadinho escrevi uma coisa que dirigi depois à A.. Não sei se o deveria ter feito, apesar de saber que não devia. Estas dúvidas e certezas são  como aquelas iluminuras medievais, nunca se sabe qual é a planta de que vemos a flor, há sempre mais trinta, todas juntas, emaranhadas umas nas outras. Irremediavelmente juntas, diria mesmo se pudesse dizer. Não posso ou não quero. Querer é poder. E não querer, será não poder?

Claro que podemos sempre esquiar entre palavras com a elegância de um slalomeur pista abaixo, mas neste caso esquiar entre silêncios seria mais adequado, apesar de os silêncios não se verem e as marcas na pista de slalom sim. Mas a analogia continua perceptível, não achas? Os silêncios não se vêem mas ouvem-se.

Penso que sim e penso também que já não-te-disse o suficiente. Daqui em diante teria apenas pleonasmos, redundâncias, repetições sem fim.

Posso, apenas, desejar-te uma boa noite.

Beijo,

(Para a P., com um beijo escrito e sublinhado).

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.