30.5.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-05-2019

Devia fazer um roteiro de bebidas e bares: Painkiller no Soggy Dollar Bar em Jost van Dyke, uma das Ilhas Virgens Britânicas (BVI para os íntimos). Alexander no Procópio, em Lisboa, indubitavelmente o melhor bar do mundo e arredores, que certamente por simples coincidência tem o melhor barman do mundo (e arredores, vá lá). Margarita no bar de uma das marinas de Puerto Vallarta, no México. Não me lembro de qual mas aposto que seria capaz de lá voltar de olhos vendados, tão boa é a recordação que tenho daqueles baldes - piscinas - da mistura hipnotizante de doce e amargo, coabitam mas não se misturam, como aqueles rios no Brasil que correm lado a lado durante centenas de quilómetros. Piña Colada no Barrachino, em S. Juan de Puerto Rico, o bar onde foram inventadas e onde me embebedei com a minha filha, creio (que me embebedei. Estava com a minha filha, isso é certo). Mai Tai no Trader Vic's, em Oakland, onde me engrossei com uma das melhores tripulações com as quais me foi dado navegar.

Em La Guaira (ou pelo menos lá perto) bebi há muitos anos o melhor Cuba Libre de sempre - isto é um duplo oxímoro: para além daqueloutro óbvio, o Cuba Libre é um cocktail horrível. O do Paolo, um fascista italiano daqueles que defendia Mussolini porque põs os comboios italianos a andar a horas era simplesmente esplêndido. Não era o melhor por manifesta ausência de concorrência. Já não deve existir, vai para o arquivo. Mojito no Rana Dorada (o do Casco Viejo), na cidade de Panamá (nunca mais bebi um igual e o sacana do colombiano que mos fazia foi-se embora sem pré-aviso. Fiquei descalço de calças na mão). Whisky de malte no Piano Pub de La Rochelle, onde tive o privilégio, a honra, o prazer de aprender tudo sobre essa bebida pelas mãos do... do... do dono do lugar, uma torre com duas pernas e um bigode, jogador de rugby, montanha de sensibilidade com a qual hesitaria duas vezes - não, duas mil - antes de me bater com ele: um murro demolidor dado com sensibilidade é ainda mais demolidor, não é?

Escrevo no Tasquita d'Esquina, o único sítio em Palma que consegue rivalizar com o Antiquari e ganhar-lhe, tantas vezes. É provável que esta lista vá sendo acrescentada - lembro-me de uma Cachaceria em S. Luís, por exemplo; da Pilotine, em Dunkerque, também já passada àquele vasto terreno baldio da memória; da Casa do Largo, que era do Largo e do Luís e minha, onde escrevi algumas das poucas páginas decentes que escrevi; o Door 13 ainda não entrou para este panteão, mas falta muito pouco. Basta eu começar a gostar de cocktails modernos; lembro-me de um Dry Martini divino, genial, sublime - mas não me lembro de onde era...  Pouco importa: o roteiro é sobre bares, não sobre memórias. [Skullduggery, porra. Como consegues esquecer-te de mencionar o Skull? E o Palmar Tent Lodge, em Bastimentos, Bocas del Toro, Panamá??? Dark & Stormy em St. John's, Corral Bay. Come se chamava o bar? Quero lá ir agora.]

(Nota: o medronho da Tasquita acabou. Isto ou é maldição ou é azar: ao Fernet do Antiquari aconteceu o mesmo, ao vermute do qual eu gostava no Ca na Chinchilla também.)

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Animula vagula, blandula. Deambula, animula, passeia por essas ruas que ora te levam a um bar ora a ontem, bifurcações imprevistas: ou secas a adega aqui ou a secas ali e em todo o lado és bem vindo. Como é que fazem para não ver? Se calhar vêem e nesse caso quem não vê és tu, animula vagula, blandula, hóspede deste corpo que nunca verdadeiramente amaste e tanto te maltratou.

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Bifurcados, unifurcados, enforcados, forcados: morro num mundo no qual se morre por uma vírgula.

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Hoje quis comprar um livro de Gamoneda, mas a Babel não tinha.

"Detrás de la oscuridad están los rostros que me han abandonado.

Yo ví su piel trabajada por relámpagos. Ahora

ya sólo veo, en el instante amarillo,

el resplandor de sus lejanos párpados."


Ou então:

"Vienen con lámparas, conducen

serpientes ciegas a

las arenas albarizas.



Hay un incendio de campanas. Se

oye gemir el acero

en la ciudad rodeada de llanto."



É por causa destas coisas que queria comprar Gamoneda. Felizmente tenho a argentina selenita e sublime em casa, na cama mesmo ao lado da minha.

"La memoria es mortal. Algunas tardes, Billie Holliday pone su rosa enferma en mis oídos.

Algunas tardes me sorprendo

lejos de mí, llorando."


Nunca choro perto de mim, ou só raramente: detesto que me vejam chorar. É como ser apanhado a roubar no supermercado: toda a gente sabe que o fazemos por necessidade, mas isso não invalida a fundamental ilicitude do acto.

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Ontem pensava na resiliência da depressão; hoje penso na da vida, muito maior: "Somos todos uns farsantes, sobrevivemos aos nossos problemas".

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