Hoje fui engraxar os sapatos. Engraxar os sapatos é um acto de civilidade. Devem ser engraxados uma vez por semana - semana de uso, note-se, que é, naturalmente, diferente da semana de calendário. Se considerarmos que um senhor deve ter pelo menos dois pares de sapatos (refiro-me, escusado é perguntarem, a sapatos pretos de atacador. Sou contra o uso na cidade durante as horas de trabalho, de outro tipo de sapatos, sejam eles sapatilhas, sapatos de vela, ou até mocassins, mesmo que pretos) dois pares de sapatos, dizia eu, usados alternadamente, cada um desses pares deve ser engraxado uma vez de quinze em quinze dias.
Pessoalmente, aconselho o senhor que engraxa sapatos no British Bar, ao Cais do Sodré. Receio muito o que vai acontecer, quando ele, que já não é novo, longe disso, morrer, coitado. Devo dizer que não é só ele que me leva ao British Bar: o beer shandy, os croquetes e ter sabido, já lá vão uns anos, que era o bar favorito do José Cardoso Pires são outras das razões. O British Bar é um sitío muito selecto, tem uns empregados correctíssimos, e o beer shandy, feito com verdadeira ginger beer é único, na nossa cidade. Ainda por cima fica ao lado de uma loja de jornais onde posso comprar quotidianamente o Financial Times; e uma vez por semana o Shipping News.
Reparei que trouxe os mocassins pretos. Compreende-se: é um dia quase feriado e eu sabia que estaria sozinho no escritório. Os mocassins não devem ser usados no trabalho, já o disse, creio. Reservo-os para as compras de sábado de manhã, para a Missa de domingo e para os jantares em casa do meu cunhado, de quem não gosto muito (uma vez até levei mocassins castanhos para jantar em casa dele... Castanhos! Mas depois reparei que muito mais do que ele, era eu que estava pouco à vontade e não voltei a repetir a graça).
No meu escritório temos pessoas que se vestem de todos os modos e feitios – alguns até vão de sapatilhas para o trabalho. Não lhes digo nada, claro, mas faço-lhes ver que desaprovo inteira, frontalmente. Felizmente não há mulheres – enfim, há só uma, mas é uma senhora de idade, secretária do patrão (já o era do pai dele), e não comete faltas de gosto, como deixar as alças do soutien à vista. Também verdade seja dita, raramente a vemos, nós, os que trabalhamos no rés-do-chão. É uma empresa de shipping: tratamos de tudo o que se relacione com o transporte marítimo de cargas secas – desde o fretamento de um navio até ao transbordo de um contentor, fazemos tudo.
Sou o responsável pelos cálculos de demurrage: são os fees que debitamos aos nossos clientes pelas estadias nos portos mais prolongadas do que o acordado. É um lugar importante: o demurrage pode contribuir com uma fatia significativa do lucro de uma operação; muitas vezes, será mesmo a única fonte de proveitos, quando, por exemplo, se acorda um preço e entretanto os preços do frete subiram, por causa de uma guerra ou um tremor de terra (a mim nunca aconteceu, felizmente, mas é do conhecimento de todos os que trabalham em shipping). Não é de admirar que o patrão – enfim, o filho do patrão, para mim ele será sempre o filho do patrão – me tenha confiado este lugar no dia em que o pai morreu. Antes disso, estava no frete, mas é um lugar muito aborrecido porque as regras nunca são muito claras e estamos constantemente a ser enganados.
No escritório, um dos grandes temas de conversa, para além do futebol e dos carros são as férias. Há os que preferem ir de carro porque, dizem, “fazem as férias que querem: de Lisboa a Florença e volta em dez dias, com passagem por Paris (“Não vejo nada? Mas eu já saí daqui com a intenção de não parar. Em Florença, por exemplo, vi os monumentos todos. Só não entrei em nenhum.”) e os que preferem o avião: “o carro já não compensa. Vais a Paris 3 noites 4 dias, ida e volta, por 70 contos” (este ainda fala em contos, coitado). Eu não: todos os anos vou a Benidorme, duas semanas em Agosto. Sem falhar, há vinte anos. Aquilo já não está a mesma coisa, claro – mas para quê mudar? Os outros sítios também já não são o que eram há vinte anos. E é barato, além disso: camioneta, meia-pensão, uma cerveja de vez em quando e não gasto mais de 450 euros. Isso sim, são férias, mesmo se por vezes a praia está demasiado cheia. E tive que mudar de pensão: a que usei durante dez anos estava perto da praia e ficou muito cara.
Cá em Portugal, uma vez por semana, ando a pé: apanho o comboio da linha de Cascais e vou andar no Paredão. É muito bonito (aí sim, levo as sapatilhas brancas). Parece que estamos em férias: aquele mar todo, tão azul e as velas dos barcos à vela. Muitas vezes vejo navios fundeados à espera de piloto. Não quiseram entrar para não pagar as taxas de fim-de-semana. Cada vez que os vejo pergunto-me quem terá feito os contratos de fretamento. Será que o demurrage inclui os fins-de-semana?
Não sou avarento, ao contrário do que dizem os meus colegas do escritório: tenho cuidado com o dinheiro, é tudo. Tenho as minhas poupanças no banco (vou deixá-las a uma instituição de caridade se me acontecer alguma coisa antes de tempo, longe vá o agoiro). Não desperdiço. Odeio o desperdício. Até no emprego: recusei o computador novo que o filho do patrão me quer oferecer há não sei quanto tempo – para quê? Uma calculadora, uma folha de papel e um lápis chegam perfeitamente para fazer o meu trabalho (“oferecer” é uma maneira de dizer, claro: o computador é dele). Os meus colegas riem-se de mim, eu sei, pela calada.
Mas não me importo: se eu quisesse, seria feliz. Sei o suficiente de demurrage para abrir uma universidade; conheço as regras do bom gosto e da boa educação, sou culto, tenho um pé-de-meia no banco e uma vez por ano vou de férias. Sou conhecido de todos e todos me respeitam. Bastava eu querer, e seria o homem mais feliz da terra.
Pessoalmente, aconselho o senhor que engraxa sapatos no British Bar, ao Cais do Sodré. Receio muito o que vai acontecer, quando ele, que já não é novo, longe disso, morrer, coitado. Devo dizer que não é só ele que me leva ao British Bar: o beer shandy, os croquetes e ter sabido, já lá vão uns anos, que era o bar favorito do José Cardoso Pires são outras das razões. O British Bar é um sitío muito selecto, tem uns empregados correctíssimos, e o beer shandy, feito com verdadeira ginger beer é único, na nossa cidade. Ainda por cima fica ao lado de uma loja de jornais onde posso comprar quotidianamente o Financial Times; e uma vez por semana o Shipping News.
Reparei que trouxe os mocassins pretos. Compreende-se: é um dia quase feriado e eu sabia que estaria sozinho no escritório. Os mocassins não devem ser usados no trabalho, já o disse, creio. Reservo-os para as compras de sábado de manhã, para a Missa de domingo e para os jantares em casa do meu cunhado, de quem não gosto muito (uma vez até levei mocassins castanhos para jantar em casa dele... Castanhos! Mas depois reparei que muito mais do que ele, era eu que estava pouco à vontade e não voltei a repetir a graça).
No meu escritório temos pessoas que se vestem de todos os modos e feitios – alguns até vão de sapatilhas para o trabalho. Não lhes digo nada, claro, mas faço-lhes ver que desaprovo inteira, frontalmente. Felizmente não há mulheres – enfim, há só uma, mas é uma senhora de idade, secretária do patrão (já o era do pai dele), e não comete faltas de gosto, como deixar as alças do soutien à vista. Também verdade seja dita, raramente a vemos, nós, os que trabalhamos no rés-do-chão. É uma empresa de shipping: tratamos de tudo o que se relacione com o transporte marítimo de cargas secas – desde o fretamento de um navio até ao transbordo de um contentor, fazemos tudo.
Sou o responsável pelos cálculos de demurrage: são os fees que debitamos aos nossos clientes pelas estadias nos portos mais prolongadas do que o acordado. É um lugar importante: o demurrage pode contribuir com uma fatia significativa do lucro de uma operação; muitas vezes, será mesmo a única fonte de proveitos, quando, por exemplo, se acorda um preço e entretanto os preços do frete subiram, por causa de uma guerra ou um tremor de terra (a mim nunca aconteceu, felizmente, mas é do conhecimento de todos os que trabalham em shipping). Não é de admirar que o patrão – enfim, o filho do patrão, para mim ele será sempre o filho do patrão – me tenha confiado este lugar no dia em que o pai morreu. Antes disso, estava no frete, mas é um lugar muito aborrecido porque as regras nunca são muito claras e estamos constantemente a ser enganados.
No escritório, um dos grandes temas de conversa, para além do futebol e dos carros são as férias. Há os que preferem ir de carro porque, dizem, “fazem as férias que querem: de Lisboa a Florença e volta em dez dias, com passagem por Paris (“Não vejo nada? Mas eu já saí daqui com a intenção de não parar. Em Florença, por exemplo, vi os monumentos todos. Só não entrei em nenhum.”) e os que preferem o avião: “o carro já não compensa. Vais a Paris 3 noites 4 dias, ida e volta, por 70 contos” (este ainda fala em contos, coitado). Eu não: todos os anos vou a Benidorme, duas semanas em Agosto. Sem falhar, há vinte anos. Aquilo já não está a mesma coisa, claro – mas para quê mudar? Os outros sítios também já não são o que eram há vinte anos. E é barato, além disso: camioneta, meia-pensão, uma cerveja de vez em quando e não gasto mais de 450 euros. Isso sim, são férias, mesmo se por vezes a praia está demasiado cheia. E tive que mudar de pensão: a que usei durante dez anos estava perto da praia e ficou muito cara.
Cá em Portugal, uma vez por semana, ando a pé: apanho o comboio da linha de Cascais e vou andar no Paredão. É muito bonito (aí sim, levo as sapatilhas brancas). Parece que estamos em férias: aquele mar todo, tão azul e as velas dos barcos à vela. Muitas vezes vejo navios fundeados à espera de piloto. Não quiseram entrar para não pagar as taxas de fim-de-semana. Cada vez que os vejo pergunto-me quem terá feito os contratos de fretamento. Será que o demurrage inclui os fins-de-semana?
Não sou avarento, ao contrário do que dizem os meus colegas do escritório: tenho cuidado com o dinheiro, é tudo. Tenho as minhas poupanças no banco (vou deixá-las a uma instituição de caridade se me acontecer alguma coisa antes de tempo, longe vá o agoiro). Não desperdiço. Odeio o desperdício. Até no emprego: recusei o computador novo que o filho do patrão me quer oferecer há não sei quanto tempo – para quê? Uma calculadora, uma folha de papel e um lápis chegam perfeitamente para fazer o meu trabalho (“oferecer” é uma maneira de dizer, claro: o computador é dele). Os meus colegas riem-se de mim, eu sei, pela calada.
Mas não me importo: se eu quisesse, seria feliz. Sei o suficiente de demurrage para abrir uma universidade; conheço as regras do bom gosto e da boa educação, sou culto, tenho um pé-de-meia no banco e uma vez por ano vou de férias. Sou conhecido de todos e todos me respeitam. Bastava eu querer, e seria o homem mais feliz da terra.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.