5.11.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-11-2019

É preciso ver o quadro: à minha esquerda, o mar. Ainda revolto, tem havido badanal e as vagas por vezes molham a ciclovia. Pouco. À minha frente, os mastros do STP: quatro, cinco níveis de vaus, iluminados, luzinhas encarnadas no galope. Um gajo não sabe bem se aquilo são as barras de uma prisão, se flechas para a liberdade e concentra-se na beleza, a simples beleza daquelas luzes brancas, quase transparentes. Os vaus a níveis diferentes dão ritmo à noite, fazem-me pensar no que lhes está por baixo. À minha direita, a catedral. Por cima, em frente e por trás o ar agora fresco, quase frío, refrescante e solto como o amor de uma mulher independente.

Chego a casa com uma furiosa vontade de ouvir as Vésperas de Rachmaninov pelo Corboz, mas não as encontro no Youcoiso. Também não encontro rum na cozinha. Não encontro nada, na verdade: ainda tenho os olhos cheios daquela catedral, daqueles mastros, daquele mar para o qual olhava de soslaio enquanto pedalava. Ainda tenho os olhos cheios desta Palma que em breve deixarei, saudades precoces como a ejaculação de um adolescente, felicidade composta (haverá outra)?

Não sei. Não quero saber. Mudo da Vésperas para os cânticos da Liturgie Slavonne pelos monges de Chevretogne e tenho vontade de matar o gajo que me ficou com os CD. Olhem para aqueles mastros como barras de uma prisão e para o mar, a prisão para o qual eles olham como se de liberdade se tratasse. É.

Sim, eu sei. Houve badanal, tem havido todos estes últimos dias. Isto está um bocado mexido.

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O quarto está cada dia melhor. Qualquer dia terei de levar esta merda toda para Mértola e voltar à vida leve do mar. Já lá vão quase dois anos desde a última vez que pisei o tapete azul. Tinha a catedral na proa, nesse dia, não à direita.

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É demasiado tarde para ir beber rum ao Antiquari. (É uma pergunta, não uma afirmação.)

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Sou ateu desde os onze anos, desde que troquei as missas dominicais pela vela, faz agora cinquenta e um anos. Penso nisto cada vez que oiço música sacra como esta e me encho, incho, finjo que não é nada comigo. Sim,  Deus é só uma palavra diferente para designar outra coisa qualquer, uma coisa que se poderia chamar Mistérios, Tempo, Vida, Morte, Mastros à Frente de uma Catedral, Livros bem Escritos. Resumir tudo isso a uma só palavra simplifica - e conforta, se à angústia também se puder chamar conforto.

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O dia começou às sete e meia da manhã e teima em não terminar. Abri uma garrafa de Habla la Tierra. Esta mistura de bom vinho tinto e música sacra vai dissolvê-lo como o ácido dissolvia as personagens do Roger Rabbit.

A vida devia ser uma mistura de vinho tinto, rum e trabalho. Pena que depois venham tantas coisas estranhas misturar-se-lhe.

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Descobri um poeta espanhol chamado Miguel Hernandez. Diz coisas assim:

«No sé por qué, no sé por qué ni cómo,
me perdono la vida cada dia.»

O homem era amigo de Vicente Aleixandre:

«Cuerpo feliz que fluye entre mis manos,
rostro amado donde contemplo el mundo

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Habla la Tierra e falam os cânticos da liturgia eslava. Há melhor definição de Deus?

Há: vida.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.