É preciso ver o quadro: à minha esquerda, o mar. Ainda revolto, tem havido badanal e as vagas por vezes molham a ciclovia. Pouco. À minha frente, os mastros do STP: quatro, cinco níveis de vaus, iluminados, luzinhas encarnadas no galope. Um gajo não sabe bem se aquilo são as barras de uma prisão, se flechas para a liberdade e concentra-se na beleza, a simples beleza daquelas luzes brancas, quase transparentes. Os vaus a níveis diferentes dão ritmo à noite, fazem-me pensar no que lhes está por baixo. À minha direita, a catedral. Por cima, em frente e por trás o ar agora fresco, quase frío, refrescante e solto como o amor de uma mulher independente.
Chego a casa com uma furiosa vontade de ouvir as Vésperas de Rachmaninov pelo Corboz, mas não as encontro no Youcoiso. Também não encontro rum na cozinha. Não encontro nada, na verdade: ainda tenho os olhos cheios daquela catedral, daqueles mastros, daquele mar para o qual olhava de soslaio enquanto pedalava. Ainda tenho os olhos cheios desta Palma que em breve deixarei, saudades precoces como a ejaculação de um adolescente, felicidade composta (haverá outra)?
Não sei. Não quero saber. Mudo da Vésperas para os cânticos da Liturgie Slavonne pelos monges de Chevretogne e tenho vontade de matar o gajo que me ficou com os CD. Olhem para aqueles mastros como barras de uma prisão e para o mar, a prisão para o qual eles olham como se de liberdade se tratasse. É.
Sim, eu sei. Houve badanal, tem havido todos estes últimos dias. Isto está um bocado mexido.
...........
O quarto está cada dia melhor. Qualquer dia terei de levar esta merda toda para Mértola e voltar à vida leve do mar. Já lá vão quase dois anos desde a última vez que pisei o tapete azul. Tinha a catedral na proa, nesse dia, não à direita.
.........
É demasiado tarde para ir beber rum ao Antiquari. (É uma pergunta, não uma afirmação.)
...........
Sou ateu desde os onze anos, desde que troquei as missas dominicais pela vela, faz agora cinquenta e um anos. Penso nisto cada vez que oiço música sacra como esta e me encho, incho, finjo que não é nada comigo. Sim, Deus é só uma palavra diferente para designar outra coisa qualquer, uma coisa que se poderia chamar Mistérios, Tempo, Vida, Morte, Mastros à Frente de uma Catedral, Livros bem Escritos. Resumir tudo isso a uma só palavra simplifica - e conforta, se à angústia também se puder chamar conforto.
.........
O dia começou às sete e meia da manhã e teima em não terminar. Abri uma garrafa de Habla la Tierra. Esta mistura de bom vinho tinto e música sacra vai dissolvê-lo como o ácido dissolvia as personagens do Roger Rabbit.
A vida devia ser uma mistura de vinho tinto, rum e trabalho. Pena que depois venham tantas coisas estranhas misturar-se-lhe.
........
Descobri um poeta espanhol chamado Miguel Hernandez. Diz coisas assim:
«No sé por qué, no sé por qué ni cómo,
me perdono la vida cada dia.»
O homem era amigo de Vicente Aleixandre:
«Cuerpo feliz que fluye entre mis manos,
rostro amado donde contemplo el mundo,»
.........
Habla la Tierra e falam os cânticos da liturgia eslava. Há melhor definição de Deus?
Há: vida.
Chego a casa com uma furiosa vontade de ouvir as Vésperas de Rachmaninov pelo Corboz, mas não as encontro no Youcoiso. Também não encontro rum na cozinha. Não encontro nada, na verdade: ainda tenho os olhos cheios daquela catedral, daqueles mastros, daquele mar para o qual olhava de soslaio enquanto pedalava. Ainda tenho os olhos cheios desta Palma que em breve deixarei, saudades precoces como a ejaculação de um adolescente, felicidade composta (haverá outra)?
Não sei. Não quero saber. Mudo da Vésperas para os cânticos da Liturgie Slavonne pelos monges de Chevretogne e tenho vontade de matar o gajo que me ficou com os CD. Olhem para aqueles mastros como barras de uma prisão e para o mar, a prisão para o qual eles olham como se de liberdade se tratasse. É.
Sim, eu sei. Houve badanal, tem havido todos estes últimos dias. Isto está um bocado mexido.
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O quarto está cada dia melhor. Qualquer dia terei de levar esta merda toda para Mértola e voltar à vida leve do mar. Já lá vão quase dois anos desde a última vez que pisei o tapete azul. Tinha a catedral na proa, nesse dia, não à direita.
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É demasiado tarde para ir beber rum ao Antiquari. (É uma pergunta, não uma afirmação.)
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Sou ateu desde os onze anos, desde que troquei as missas dominicais pela vela, faz agora cinquenta e um anos. Penso nisto cada vez que oiço música sacra como esta e me encho, incho, finjo que não é nada comigo. Sim, Deus é só uma palavra diferente para designar outra coisa qualquer, uma coisa que se poderia chamar Mistérios, Tempo, Vida, Morte, Mastros à Frente de uma Catedral, Livros bem Escritos. Resumir tudo isso a uma só palavra simplifica - e conforta, se à angústia também se puder chamar conforto.
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O dia começou às sete e meia da manhã e teima em não terminar. Abri uma garrafa de Habla la Tierra. Esta mistura de bom vinho tinto e música sacra vai dissolvê-lo como o ácido dissolvia as personagens do Roger Rabbit.
A vida devia ser uma mistura de vinho tinto, rum e trabalho. Pena que depois venham tantas coisas estranhas misturar-se-lhe.
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Descobri um poeta espanhol chamado Miguel Hernandez. Diz coisas assim:
«No sé por qué, no sé por qué ni cómo,
me perdono la vida cada dia.»
O homem era amigo de Vicente Aleixandre:
«Cuerpo feliz que fluye entre mis manos,
rostro amado donde contemplo el mundo,»
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Habla la Tierra e falam os cânticos da liturgia eslava. Há melhor definição de Deus?
Há: vida.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.