25.11.19

Retratos de pessoas que não existem, I

Tinha uma palete muito limitada de imagens - o Sol, o vento, a Lua, o deserto, o abismo, o mar - às quais referia tudo o que lhe acontecia. Por exemplo: viver e abismo (ao qual por vezes chamava precipício) andavam sempre juntos. Amor, amores - os que teve, não teve, teve ou não teve assim-assim, pela metade ou por um quarto - à Lua. Vento, mar, deserto andavam sistematicamente associados à liberdade.

Vivia no abismo, bolinava para dele sair, amava para ver o caminho à noite: a simplicidade da sua vida reflectia-se forçosamente na parca qualidade da escrita. A geografia apaixonava-o. "A geografia - seja ela a da terra, a do amor, a do corpo, a do sonho - é o princípio unificador disto tudo" dizia. "Traça um meridiano pelo teu corpo, ensina-o a dividir o tempo, dá-lhe um nome e verás o resultado. Faz o mesmo com uma linha imaginária traçada pouco abaixo do teu umbigo, coisa de um palmo mal medido (mas com muito amor). E por aí fora: do teu ventre a Ásia, do teu olhar o mar, azul e infinito. Escreve: terra, lugar, pele, a mão que os percorre, o sonho que te guia pelo tempo como o bolbo de um navio lhe precede o casco."

Acontecia-lhe por vezes dormir na cama errada, num corpo enganado; mas nunca se enganou de sonho, nunca mudou de objectivo.

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