1.12.19

Foi às seis e meia da tarde do dia 1 de Dezembro que N. entrou por um túnel de que desconhecia a saída. Fê-lo empurrado pelas contracções daquilo que para ele era, à altura, o mundo exterior. Entrou de cabeça, chorou quando saiu, nada sentiu quando lhe cortaram o cordão que, por precaução, deixara ligado durante a travessia. Faz hoje uma incerta quantidade de anos: N. não se lembra do evento, nunca ninguém lhe disse a data completa e só sabe que tudo aconteceu num dia 1 de Dezembro porque recorda vagamente algumas conversas domesticas.

N. é órfão de pai e mãe. Morreram cedo, acidente de intoxicação colectiva num restaurante que lutava pela igualdade dos sexos. Distribuía veneno igualmente entre homens e mulheres, desde que lá fossem jantar em casal. Um homem ou uma mulher sozinhos não corriam riscos: o dono do restaurante acreditava na divina providência e achava que se alguém lá ia comer sozinho morreria em breve, atropelado, vítima de um enfarte cardíaco ou de uma bala perdida durante uma luta entre gangues, frequentes naquela cidade.

N. cresceu sem saber em que ano teria nascido (usava o condicional. Não tinha a certeza de ter nascido).

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N. não sabe a sua idade exacta, mas aprendeu a viver com isso. Vai ajustando o tiro: quando lha perguntam, diz um número, baseado em experiências anteriores. Se a resposta for «Pareces mais novo», faz uma nota mental para a aumentar a próxima vez; raramente é «Pareces mais velho» mas quando é não liga. Prefere aproximar-se da verdade por um lado só, questão de simplificação e equilíbrio emocional: «Preciso de manter um certo controlo sobre estes processos», sendo "processos" uma definição vaga e ampla das suas interacções com os outros.

Em adolescente leu Camus de fio a pavio. Guardou apenas uma frase: «é preciso imaginar Sísifo feliz e livre.» É isso que tem gasto a sua vida: a fngir que é feliz e livre. Pensa vagamente em Borges: «Todos acabamos por nos parecer com a imagem que os outros fazem de nós.» Seria provavelmente a isto que se referia quando pensava nos processos sobre os quais queria manter algum controlo: aproximar-se da sua idade "por baixo".

A vida afectiva de N- era caótica. «A minha casa parece um escape room, com a diferença que elas não pagaram para dela fugirem o mais depressa possível.» Casa sendo aqui uma metáfora para coração, vida, amor, afecto, carinho, desejo. Por vezes pensava em Joseph Heller: "Yossarian was in love with the maid in the lime-colored panties because she seemed to be the only woman left he could make love to without falling in love with." Yossarian era da mesma idade do que N. ou lá próximo e teria lido Camus também, se não fosse uma personagem. «O autor, Heller leu de certeza», consolava-se. «...and he did not hate his mother and father, even though they had both been very good to him

Como poderia N. odiar mãe e pai se nunca os conhecera?

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Fazia compras aos sábados de tarde porque achava as mulheres de sábado mais bonitas do que as dos outros dias.


(Cont.)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.