14.1.20

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 13-01-2020

Subo a rua para casa. Un grupo de crianças brinca, corre para cima e para baixo como se a rua só descesse, não subisse. O silêncio é o de sempre: sólido, corpóreo, tangível. As brincadeiras dos miúdos não o desfazem. Brincam, gritam, correm à frente dele como se fosse o cenário de um teatro.

Dar cabo disto devia ser passível de pena eterna, num quarto sem saída, a ouvir reggaeton, José Mário Branco e o Fanhais até ao fim dos dias.

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Jantar no Tamuje: ensopado de galo-capão, acompanhado por um Balanches tinto, vinho adstringente, encorpado  mas fino e equilibrado. O fim de boca prolonga-se até ao gole seguinte e acumula-se com este em camadas quase identificáveis desde a primeira.

Se um dia a minha ideia for para a frente, vai ser preciso reservar uma mesa com três meses de antecedência. Ou então, pedir-lhes para fazer como na Hofbräuhaus e terem mesas reservadas em permanência para os clientes habituais.

O problema é que a Hofbräuhaus é pelo menos cem vezes maior.

O Tamuje tem a virtude de me comover às lágrimas praticamente cada vez que lá vou comer. Há de certeza um céu para as cozinheiras e a senhora que manda naquela cozinha tem nele um lugar reservado, "à direita de Deus Pai" (aspas porque cito outro Pai, o meu). E o senhor M. irá para o dos donos de restaurantes,  que não sei se é o mesmo.

Sejam ou não, espero que os façam esperar muito tempo, que os céus podem - e devem.

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Três graus positivos. A casa não está equipada para este frio. Acho mal terem acabado com o aquecimento global e terem-no trocado pelas alterações climáticas, uma chacha que tem a vantagem de todas as chachas: serve para tudo. A imprecisão é a bengala da mentira.

E custosa: aposto que esta noite me vai sair caríssima, com o aquecimento eléctrico ligado em permanência. Ver se me lembro de encomendar lenha para a próxima vez, sempre aqueço a casa e aqueço o planeta. Ou seja, dou asas ao meu legendário altruísmo e, por uma vez, beneficio com ele.

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Os livros acumulam-se no armário. Tenho de mandar fazer prateleiras e trazer para cá os que ainda estão em Évora, que são todos.

Antevejo semanas de gozo a arrumá-los - para semanas depois os ter de pôr em caixas outra vez? Espero que não. A casa é pequena mas vai ter de aguentar-se até encontrar uma maior.

Amanhã não será a véspera desse dia.

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Almoço com A. Há pessoas que não saem das nossas vidas mesmo que passemos anos sem as ver. A razão é simples, claro: fazem parte de nós e se saíssem seria como se nos arrancassem um braço. (O direito, preciso.)

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Próxima etapa: Londres. Estou farto de aviões, mas é impossível não reconhecer que se não os tivesse tão presentes estaria ainda mais farto.

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Depois: Düsseldorf. Por onde andará a S.? O Dr. Jazz fechou, isso sei. Tantas horas lá passávamos os dois, sentados nas escadas, a beber cerveja e a beijarmo-nos como se sem nós o mundo, a cerveja acabassem no dia seguinte. Ou nós...

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Não acabamos, nunca acabamos, pelo menos enquanto as pessoas que são parte de nós continuam parte de nós.

(Para a A., com o beijo que começou em Oeiras e ainda não acabou.)

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