Não há de certeza no mundo coisa mais enraivecedora do que uma dor de dentes feroz. Já vou no terceiro Tramadol praticamente seguidos e nada. É como se tivesse a tomar um placebo. Os dentistas estão fechados. A senhora com quem falei e me receitou o antibiótico - que amanhã recomeço a tomar, apesar de ter sérias dúvidas de que funcione - disse-me que não pode abrir porque não tem material de protecção. «Vão todos para os hospitais», explica, compungida. É para onde eu tenho vontade de ir agora, mas não vou. Prefiro um copo de tinto, deve combinar bem com a merda do comprimido. Quando isto começou pensei que seria como uma travessia, mas não pensei que fosse assim tanto. Antigamente andava com morfina injectável a bordo mas agora deixei-me disso. Está cada vez mais difícil encontrar um médico que ma receite e, verdade seja dita, nunca a usei. Pergunto-me o que faria se a tivesse aqui. As dores são todas diferenes, umas são mais simpáticas do que outras. A da anca, por exemplo, responde bem ao anti-inflamatório (e provavelmente ao Tramadol também). Amanhã começo o antibiótico. Aposto que tudo o que conseguirei é criar uma resistência à Amoxicilina, um antibiótico simpático, eficaz e polivalente. O vinho está a ajudar. Mais um copo e isto passa para um nível aceitável. Raiva, não contra a máquina, mas contra os dentes. contra a maldita quarentena, contra a minha maldita negligência. É que ao fim e ao cabo vem tudo ter a mim. Já ando para ir tratar dos dentes há não sei quanto tempo, acusar os outros é sair pela esquerda baixa, não posso sequer gritar contra o Sanchez, contra o pânico popular, contra a histeria colectiva porque lá no fundo aparece-me uma puta de uma voz fininha a perguntar-me 'Porque é que não foste ao dentista quando podias?» «Porque pensava que a água oxigenada seria suficiente em caso de emergência, estúpido» «Pois, mas não é» «Cala-te» quase grito ela cala-se e eu bebo mais um gole de vinho, vá lá que não é uma zurrapa e se isto não passa abro outra garrafa, por agora chega de Tramadol. Vou ver à net se o tabaco piora a dor de dentes. Nao vejo nada. Comprei um maço, o terceiro desde que isto começou, não tenho mesmo problemas de tabagismo - nem qualquer outra dependência, apresso-me a esclarecer a quem me vier chatear com o vinho - mas tenho realmente um problema em conter esta raiva. Não sou suficientemente grande para a acolher toda, tem que extravasar para a porra da quarentena e da falta de máscaras e... Um dos dentistas que contactei disse-me que podia abrir, mas eram cento e cinquenta euros por sessão porque tinha de contar o tempo das limpezas antes e depois respondi-lhe que não muito obrigado, ainda por cima era longe para burro ele que vá limpar antes e depois quem quiser a mim não me limpa cento e cinquenta paus por sessão as dores levam-nos ao fundo da raiva, não é? Ao fundo mesmo, à raiz da raiva e não é um jogo de palavras, deve ser a pior forma de impotência uma vez em Cape Town disse a um dentista que preferia um ciclone no mar a ir a um dentista, sentei-me e adormeci. Tinha bebido uma garrafa de whisky inteira antes de ir para lá. Quando acabou o homem acordou-me - com uma certa dificuldade - e disse-me que gostaria muito que todos os clientes dele fossem como eu. Emborrachou-se só com o hálito, suponho. Antes de adormecer ainda tive tempo para lhe pedir que verificasse o tratamento que a dentista russa me tinha feito um ano antes. «Está óptimo», disse-me à saída. Lembro-me da dor de dentes antes da chegada a Nakhodka, mas não me lembro de ter sido tão má como esta e deve ter sido muito pior, lembro-me que nem respirar pela boca podia por causa do frio. O Boca d'Ouro levou-me ao hospital no dia a seguir à chegada, ainda estávamos fundeados, foi a sessão de dentista mais alucinante da minha vida, uma sala enorme cheia de manchas de sangue em tudo quanto era sítio, a broca que devia ser do século passado (isto é do século XIX), a dentista a falar com a enfermeira enquanto me brocava o dente e de vez em quando perguntava «ballit?», foi a primeira palavra que aprendi em russo, significa Dói? e a certa altura doeu mesmo, afastei-lhe a mão, levantei-me e fui-me embora, o Boca d'Ouro estava lá fora e quando cheguei a brdo disse-lhe que queria outro dentista. Dois dias depois levou-me à mesma - as mesmas filas à porta, o mesmo edíficio antigo, velho e decrépito eram dezenas de pessoas e nós passámos à frente delas todas, como tínhamos feito da outra vez - e fui tratado como um rei. Só à saída de Nakhodka viemos a saber que o Boca d'Ouro, além de agente de navegação era o chefe da KGB local, ceci explicant cela. Tenho tido dores de dentes épicas, mas esta deve ser o Adamastor das dores de dentes. Mudei de vinho. Quem não tem whisky caça com vinho. Amanhã compro uma garrafa de rum, não vá o diabo tecê-las. Pareço uma farmácia ambulante. Aposto que lá por dentro está tudo podre, estômago, fígado, pâncreas, intestinos, tudo. A puta da dor acalmou um bocadinho. Acabo o tintol - até rima com Tramadol, não deve ser coincidência - e vou outra vez ver se durmo. A raiva não é um bom somnífero, eu sei. E não se dilui bem em vinho, antes pelo contrário. ¡Qué vaya! ¡Me cago en la rabia! O vinho é bom, valha-me isso. É um Petit Verdot de Alicante, ecológico, com pouca entrada mas bom fim de boca e alguma adstrigência, talvez complemente bem o sacana do analgésico. A uma dor de dentes os franceses chamam une rage de dents, uma raiva de dentes. Uma raiva contra os dentes, con.
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