1.5.20

Carta aberta ao senhor meu corpo

Querido corpo,

Viva. Não te pergunto como estás porque sei que não andas muito bem, mas escrevo-te esta breve mensagem para te avisar de uma coisa simples: se tu pensas que a nossa vida daqui para a frente vai ser assim, tira os cavalinhos da chuva.

Acho a tua múltipla reacção a este confinamento exagerada, tão exagerada e absurda como a reclusão ela própria. Isto é chato, mas não é motivo para reagires como estás a reagir. Lembro-te de que desde muito novo te enchi de whisky, rum, vinho, vodka, gin, cerveja - nem sempre dos melhores, mas tão pouco dos piores - de carne, de piripiri, de peixe fresco e congelado, te proporcionei momentos de indescrítivel grandeza, te dei a amar corpos sublimes (outros menos, é certo), te ofereci dias e noites seguidos de festa e de festas (e horrores, sim, eu sei); não te podes queixar. Tiveste uma vida que a maioria das pessoas que conheço não teve, andaste várias vezes à soleira da morte e sempre dela te safei. Acho indecente, injusto e injustificado o que me fazes passar estes dias. Não serve de nada queixares-te da falta de médicos. Sabes perfeitamente que nunca fui presto a levar-te a eles e mesmo que agora os houvesse far-te-ia esperar como sempre fiz.

Acalma-te, meu caro. Melhores dias virão. Não penses que conseguirás arrastar-me para esse poço onde pareces querer levar-me; e não contes comigo para te curar as maleitas. Cura-te tu, que tens boa idade para isso.

Teu,

Eu

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.