6.6.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-06-2020

A prodigiosa capacidade que sempre tive de me aborrecer nas festas tem vindo a melhorar com a surdez: aborreço-me cada vez mais, mas agora sei porquê. Em contrapartida, continuo a perder copos como perco mulheres: vão-se embora sem um adeus sequer. Se calhar, fartam-se de mim como eu me farto deles.

Hoje o pretexto da festa foi o fecho da Sifoneria. Mais uma parte de mim que fecha. São tantas, as partes de mim que vão fechando. Perco-lhes a conta, a tal ponto que me pergunto o que sobrará quando eu morrer. Cem quilos de excesso de peso, dois filhos e uma bicicleta, se Deus quiser.

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Vou a muitos bares com um objectivo que me parece louvável: dividir o mal pelas aldeias.

Sou incompreendido: todos me recebem bem.

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O governo espanhol («governo espanhol», nas presentes circunstâncias, ou é um oxímoro ou é uma piada. Tendo mais para esta última) quer começar a multar as pessoas que andem na rua sem máscara. Agora, que a epidemia acabou. Isto teria graça se fosse um daquele shows da televisão, com bonecos animados ou marionetes, sapos cínicos e porquinhas ingénuas.

Infelizmente, não é e não tenho jeito nem para boneco animado nem - muito menos - para marionete. Sobretudo quando o objectivo é contribuir para a sobrevivência política de um palhaço. Que algumas pessoas aceitem isto transcende-me, mas compreendo: sou sensível a fenómenos paranormais. Que os outros não se revoltem é que não aceito.

Posso ir para a rua gritar, não posso é gritar baixinho.

Tenho sorte: posso pôr distãncia entre mim e o que me repugna. Refiro-me a distãncia física, geográfica, daquela medida em milhas náuticas.

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Safam-me o humor e a esperança. Esta para o caso daquele acabar, aquele para quando não houver esta.

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O P. continua a andar devagar e eu continuo a revoltar-me, como se não soubesse que esta é a velocidade normal. Isto é, é mais depressa do que a velocidade normal: esta é devagar e pára. Nós estamos em devagar e devagar, o que já nos devia alegrar.

Esperar peças (esperar, tout court) é para um marinheiro a mesma coisa do que esperar que a chuva acabe para um açoriano: sabe que vai acabar, mas não sabe quando. Nem - muito menos - quando recomeçará.

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