1.7.20

A minha Palma - 3

Mais um artigo para a Gazeta Rural, a quem agradeço a hospitalidade.

Tinha pensado escrever três artigos sobre Palma e Maiorca e depois passar a outro país – o Panamá, aqui entre nós, país fascinante e também ele escondido. Porém, releio o último artigo e vejo a quantidade de injustiças que nele não estão. Isto é, a quantidade de sítios que não mencionei e que a minha consciência, aos gritos, reclama eu corrija.

Não há nada a corrigir, na verdade: a maioria dos donos dos bares e cafés que mencionei não sabe sequer que escrevi sobre eles; não serão decerto os meus artigos que os vão ajudar a ultrapassar essa situação. É antes um acerto de contas interno, uma exigência da mente para ter paz consigo mesma.
Começo por falar da Tasquita d’Esquina, um café português no qual a Sandra e a Fernanda dão provas frequentes de imensa paciência e suportam as minhas erupções criativas até altas horas depois do fecho, às vezes ajudado pelo toque discreto de um sino, história de me lembrar que sou marinheiro e tenho obrigação de saber o que são horários. A Sandra – uma miúda esguia, seca, daquelas feitas de aço inox – faz francesinhas, porque é do Porto. Não sei julgá-las. Mas posso asseverar que as pataniscas de bacalhau não são nada más. O espaço é giro, amplo, não tem nada daquelas tascas para emigrantes das obras que durante tanto tempo era a única coisa de Portugal que se encontrava no estrangeiro. A selecção de vinhos é bastante decente e até há algum tempo havia medronho mas não sei porquê acabou. Continuo com o Aurélio, dos Maños, no Mercat de l’Olivar, ponto de queda praticamente quotidiano quando regresso do PANDA, às vezes feliz e a precisar de celebrar, outras triste e a procurar apaziguar. As alegrias e as desilusões ali aportam quase todos os dias, filtradas (estas) ou ampliadas (aquelas) pelo longo trajecto de bicicleta desde Calanova. O Maños é o único restaurante ao qual eu vou e quem recebe a gorjeta sou eu: o Aurélio nunca me cobra tudo o que consumo. Ao princípio reclamava, mas agora deixei de o fazer. Não vale a pena. As tapas são de longe as melhores do mercado e a energia do Aurélio é contagiosa, vertiginosa. Aquele homem trabalha depressa mesmo quando não tem ninguém (é raríssimo, admitidamente). Sugiro o pica-pica, uma espécie de pica-pau feito com choco. É de cair, de se levantar à noite, de chorar por mais. Ainda no Mercat há o Lucca e a Silvia, onde por vezes almoço pasta fresca, feita por eles ali à nossa frente e a quem devo saber hoje que a bolognese não é nada do que até agora pensava. O stand chama-se Bottega Bolognese. Foi aqui que ocorreu uma das cenas mais cómicas da minha estadia em Palma: vejo que o prato do dia é carbonara e pergunto ao senhor (ainda não o conhecia) se põe natas no molho. Olhou para mim como se lhe tivesse perguntado em que esquina trabalha a mãe dele à noite. (Note-se que a pergunta é compreensível: Palma está cheia de alemães para quem uma carbonara sem natas é como cerveja sem espuma. Que fazer? Não se pode ter tudo, BMW e saber comer pasta.) Mesmo ao lado fica o Cristian, dos Sabores del Mundo: tem a mais vasta colecção de especiarias que até hoje vi e sabe de todas. Não conhece as das Caraíbas, lapso que me comprometi a colmatar mal chegue à Martinique. É argentino até à medula, faz-me pensar numa piada sobre argentinos que não posso contar aqui e vende especiarias à tonelada por dia. A Núria, do (agora) Corner 37 e antes Latterio é igualzinha à minha tia Lena, mas sabe infinitamente mais de vermutes. É uma senhora pequena, loira e viva como a chama trémula de uma vela numa corrente de ar e eu adoro-a, ela e o vermute La Madre, que me deu a conhecer e só por isso merece o céu.

Por falar de vermutes: quem me iniciou na arte delicada, subtil, esquiva dessa bebida que hoje aprecio para cima de tudo foi o Jaume, da Bodega Can Rigo. O Jaume é um maiorquino de há não sei quantas gerações e sinto-me honrado quando ele me acolhe com a sobriedade densa, sólida, calada que é próprio das gentes desta terra. Acessoriamente, faz o melhor polvo à galega de Palma que comi fora da Coruña e albóndigas que rivalizam com as do Toni, do Café Santa Eulália (segredo: quem as faz é a mãe do Toni). Há alguns anos trouxe um barco de Brighton para aqui e em Lisboa os armadores embarcaram. A senhora fazia uma tortilha como eu nunca comi na vida e teve a gentileza de me ensinar o truque: não cozer as batatas, mas confitá-las. Tentei várias vezes e nunca consegui reproduzi-las. No Toni comi uma tortilha igualzinha à dela. Contei-lhe a história e ele disse-me «Sim, é assim que a minha Mãe as faz. Confita-as, com cebola.» A armadora esquecera-se de me mencionar a cebola, certamente por inadvertência. A praça de Santa Eulália é outra daquelas praças de Palma da qual saímos mudados a cada vez que lá vamos, sobretudo quando se sabe que o imponente campanário caiu numa tempestade, nos anos sessenta. Há dias em que ao fim da tarde o Sol o incendeia como à catedral e pergunto-me se não terá sido isso que o fez cair.
No caminho de casa, depois de deixar a bicicleta na garagem, ficam primeiro o Otaku e o seu saque higiénico – limpa tudo - e depois o Gustar. Não me acontece nem uma nem duas vezes eu passar, o Tom e o Fidel estarem a fechar a casa e obrigarem-me – este verbo é injusto – a beber uma grappa com eles e ali ficarmos a conversar de tudo e mais alguma coisa, como são as conversas de homens no fim das noites. Falta o Minyones, a Bodega Belver, o Sete Machos... O Sete Machos, meu Deus. Já lá entrei tantas vezes sóbrio. O restaurante La Fabrique, dos meus amigos Patrick e Hélène, ela ex-jornalista em Paris e ele restaurador em todo o lado. O «mini-restaurante Casa Julio» (aspas porque cito). É esta, a minha Palma e tenho provas disso: no outro dia, já não sei a propósito de quê, um dos donos do bar España (o mais novo, não passa dos sessenta e muitos) disse-me «tu no te preocupes, eres de la casa» e isto deve valer mais do que um passaporte da Cort.

Palma não é só cafés e restaurantes. Qualquer dia falo das ruas e praças. E da Catedral, claro. Não é amanhã que iremos ao Panamá...

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