28.7.20

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 27-07-2020

São quase oito e meia da tarde e a temperatura em Mértola caiu para uns míseros trinta e três graus. Hoje a máxima não chegou sequer aos quarenta. Amaricou-se e ficou lá perto, mas não, nada de passar a mágica marca dos quarenta, abaixo da qual a casa aguenta bem uma ventoinha, imagino. Sem isso, só na rua. 

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Deixei-me de arabescos e oiço Hildegarde. Não há melhor maneira de exprimir simultaneamente a gratidão e o espanto, sobretudo se se lhe juntar um copo de Balanches branco, como agora faço. A regra de que à noite nesta casa só se bebe medronho está posta de lado de uma vez por todas, como posta de pescada comida. Ficam as espinhas e a pele, que é a memória da garrafa de Farelo no congelador, coitada. Amanhã sai de lá, como eu saio daqui no dia a seguir. 

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Gosto demasiado da vida para ser capaz de a abarcar num só abraço. 

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A única coisa do género feminino que nunca me largou é a gratidão. Uma espécie dela metafísica, existencial, irracional. Não sei que fazer com isto que se me cola à pele como nunca mulher alguma. Pena não saber a quem dirigir o agradecimento.

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«Efectivamente, a virtude não é mais nada senão um afecto ordenado e medido cujo alvo nítido é Deus...
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Podemos ver isto mesmo em uma ou duas virtudes. E sugiro que escolhamos a humildade e a caridade, pois quem obtivesse estas duas já não precisaria de mais nenhuma, uma vez que as possuiria a todas.»

(Anónimo, in A nuvem do não-saber.)

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«Dói-me o mundo todo excepto a tua mão
a lavar-me por dentro.
Isso sabemos nós.»

(Cláudia R. Sampaio,  in  Já não me deito em pose de morrer.)

Ou seja, se percebo bem: um anónimo inglês do século XIV, a música de Hildegarde von Bingen, o vinho branco de Balanches, a poesia de Cláudia Sampaio e o calor que se esvai, pouco a pouco. É isto uma noite? É.

«Tragam-me um homem que me levante com
os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia»

(Cláudia, de novo.)

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A casa é pequena, os azulejos pavorosos, a luz aterradora e os móveis de fugir.  E ainda há quem goze com a capacidade que os marinheiros têm de sentir-se em casa seja onde for. 

Apercebo-me hoje, pela primeira vez, de que há um mistério mais vasto do que a vida. Chama-se gratidão e é o mistério dos mistérios.

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Sinto-me um porto à deriva sem um navio no cais. Ou seja: estou enganado, porque ando tudo menos à deriva e tenho montes de navios no cais, prontos a largar. Isto de não ser compreendido pelos próprios sentimentos é uma chatice.

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