Diz a velha sabedoria feminina que o caminho para o coração de um homem passa pelo estômago. Quando venho a Portugal penso que o caminho do patriotismo é o mesmo. Sobretudo se venho ao Porto e os meus passos me levam, à mon corps défendant, ao restaurante o Buraco. O Joseph de Maistre - um autor que merecia ser mais lido (e relido, estúpido) - contava que quando saía da prisão tencionava voltar para sua casa, mas os seus passos levavam-no invariavelmente para casa de uma Madame cujo nome esqueci. (É interessante ver isto que nos fica dos livros quando não temos a biblioteca ao lado...) No Porto acontece-me o mesmo com o Buraco, com o Candelabro - onde agora bebo um rum para ver se as dores na anca se afogam - com o Aduela, com tantos outros sítios aonde os meus passos me levam sem eu querer, sem sequer eu saber que é para lá que me levam.
Devo contudo dizer que esta relação entre o patriotismo e o estômago me intriga, para lá da boutade. Tem de certeza a ver com as memórias (no plural) e com a memória (no singular). Como em todo o lado do mundo pratos tãos bons como o bacalhau à Buraco que hoje almocei, mas nenhum vai tão longe na geografia como este. Nem na geografia nem em mais nada.
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Conheço o António Cabrita há duzentos e cinquenta anos, mais semana menos semana. É um dos melhores prosadores da língua moderna, na minha ignara mas sensível opinião. Já a sua poesia me é estanque. Hoje comprei um livro dele (ou recomprei, não sei), porque é lindo e porque sei que no meio das estanqueidades todas há pérolas. Não me enganei, como de costume: «...o pavio de uma solidão antecipada, tomar / café, fixando nas borras uns olhos pretos tristes...». Ou «Vi, numa fábrica de seda / em Benares, rostos / que pareciam pétalas sem osso, / mãos estanhadas e símiles / aos panos que lustravam / as nossas, ásperas / e remotas...»
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O meu corpo é uma máquina fisiologicamente preparada para dormir a sesta e é para lá que me vou arrastar, feito personagem beckettiana. Borges dizia que todos acabamos por nos transformar na ideia que os outros fazem de nós. Acrescento: e nas personagens dos autores que nos formaram.
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O Porto está leve e alegre, mas se calhar fui eu que mudei, não sei. Sei é que é uma cidade com o tamanho certo, vá lá saber-se o que é o tamanho certo para uma cidade. Sei que me sinto bem aqui. Talvez seja dessa novidade que gosto, talvez doutra coisa qualquer. Não é de certeza agora que vou procurar o porquê. Sei que quero cá voltar, muitas vezes e não poucas.
(Não conhecer quase ninguém e não ser conhecido de ninguém. Será isso? «Ainda que custe, a dor tornou a vida mais legível» - Cabrita, de novo, o António. Que pessimismo, misturar idade com dor. Que verdade. Inevitabilidade. Perspicácia.)
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Declaração de desinteresse: a maioria dos autores portugueses de hoje não me interessa porque se afoga muito fácilmente. Em palavras, na sua própria sapiência - tão vasta - no seu umbigo, ainda maior. (Tão pouco gosto do que escrevo, mas isso passa ao fim de vinte anos. Às vezes menos, poucas.)
Devo contudo dizer que esta relação entre o patriotismo e o estômago me intriga, para lá da boutade. Tem de certeza a ver com as memórias (no plural) e com a memória (no singular). Como em todo o lado do mundo pratos tãos bons como o bacalhau à Buraco que hoje almocei, mas nenhum vai tão longe na geografia como este. Nem na geografia nem em mais nada.
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Conheço o António Cabrita há duzentos e cinquenta anos, mais semana menos semana. É um dos melhores prosadores da língua moderna, na minha ignara mas sensível opinião. Já a sua poesia me é estanque. Hoje comprei um livro dele (ou recomprei, não sei), porque é lindo e porque sei que no meio das estanqueidades todas há pérolas. Não me enganei, como de costume: «...o pavio de uma solidão antecipada, tomar / café, fixando nas borras uns olhos pretos tristes...». Ou «Vi, numa fábrica de seda / em Benares, rostos / que pareciam pétalas sem osso, / mãos estanhadas e símiles / aos panos que lustravam / as nossas, ásperas / e remotas...»
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O meu corpo é uma máquina fisiologicamente preparada para dormir a sesta e é para lá que me vou arrastar, feito personagem beckettiana. Borges dizia que todos acabamos por nos transformar na ideia que os outros fazem de nós. Acrescento: e nas personagens dos autores que nos formaram.
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O Porto está leve e alegre, mas se calhar fui eu que mudei, não sei. Sei é que é uma cidade com o tamanho certo, vá lá saber-se o que é o tamanho certo para uma cidade. Sei que me sinto bem aqui. Talvez seja dessa novidade que gosto, talvez doutra coisa qualquer. Não é de certeza agora que vou procurar o porquê. Sei que quero cá voltar, muitas vezes e não poucas.
(Não conhecer quase ninguém e não ser conhecido de ninguém. Será isso? «Ainda que custe, a dor tornou a vida mais legível» - Cabrita, de novo, o António. Que pessimismo, misturar idade com dor. Que verdade. Inevitabilidade. Perspicácia.)
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Declaração de desinteresse: a maioria dos autores portugueses de hoje não me interessa porque se afoga muito fácilmente. Em palavras, na sua própria sapiência - tão vasta - no seu umbigo, ainda maior. (Tão pouco gosto do que escrevo, mas isso passa ao fim de vinte anos. Às vezes menos, poucas.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.