31.8.20

Diário de Bordos - Porto, 31-08-2020

Uma palavra que não me larga o espírito: vastidão. Da gratidão: sou capaz de passar por baixo de escadas; da sorte: tenho amigos que me ajudam nas passagens; de tudo: o meu mapa-mundo dos afectos é vasto e profundo e tudo o que ele contém é meu, está vivo e tangível. Pode a maré estar baixa, vazia quanto quiser que a carta não mostra nunca o fundo. Pode por vezes ver-se um baixio ou outro, um escolho não assinalado, uma corrente adversa, um dia sem vento. Mas é tão pouco, comparado com a vastidão de tudo o que ela contém.  

O Porto, por exemplo. Tenho andado a tentar perceber porque tanto gosto desta cidade, que dantes tanto detestava. Tem um efeito apaziguante em mim. A juventude das pessoas - não sei qual a diferença entre as pirâmides etárias do Porto e de Lisboa, mas estaria tentado a apostar que aqui há muito mais jovens do que em Lisboa. A limpeza - esta cidade é limpa, pelo menos nas áreas por onde a percorro. As pessoas: parecem-me menos façanhudas, os semblantes menos cerrados, há mais risos.

Não sei. Pode ser uma falsa impressão, sou-lhes propenso. O que não tem nada de falso, isso posso afiançar, é o gosto que tenho cada vez que aqui estou. 

Verdade seja dita não faço muito. Dou descanso à anca e deixo entrar a calma que vejo em tudo o que me rodeia. Vasto programa, juro, apesar de não parecer. A calma, a alegria que vejo nas pessoas, a beleza têm de desalojar a merda toda que se tem acumulado estes dias todos. Vasta sorte: esta coabita bem com a gratidão. Quando um dia morrer espero que a minha última palavra seja «Obrigado». Ou «Amo-te vida, apesar de todas as merdas que me fizeste.»  Percebo finalmente de que ri a hiena da história: da vida.

Esperam-me dois ou três dias de férias, que serão passados entre o hotel, o Aduela, um bar cujo nome não recordo e fica nas redondezas, o Papagaio - descoberta recente, abençoada - o Piolho e pouco mais. Tentarei não ir à feira: não há pior tortura do que ter livros à frente e não os poder comprar. Talvez chova a tempo de ainda lá dar um salto. Que se lixe: estou de  férias, estou de purga, estou feliz. O resto é basicamente ruído de fundo, como o barulho de um rato que corre debaixo do palco durante a prestação da orquestra sinfónica.

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Há momentos nestas ruas que me transportam para um quarto de criança que fizesse construções com Legos, Mecanos e todas as outras marcas de jogos de cosntrução infantis. É uma mistura alegre de estilos, harmoniosa, leve. Como em Espanha, de resto. 

O que o tempo muda: alegria, leveza, harmonia são as últimas coisas que pensaria um dia associar ao Porto. 

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Quanto mais penso na morte mais grato me sinto.


(Para a M. B., amiga de muitas escadas, pontes e cartas.)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.