16.8.20

Gazeta Rural V - Porque viajamos?

Viaja-se por amor, por trabalho, para mercanciar, descobrir, explorar, para viver ou sonhar, fugir, encontrar. Viaja-se por gosto, por lazer, desgosto, viaja-se com o tempo ou contra ele, por desespero ou na esperança de. Viaja-se para regressar em breve ou nunca mais; sabendo para onde se vai, como se irá, quanto tempo se ficará no destino – ou desconhecendo tudo isso. Viaja-se para fazer a revolução, ou para dela fugir. Viaja-se até com destino, ou sem ele. Viaja-se por viajar, para não ficar quieto ou na expectativa de um dia se poder, finalmente, ficar quieto. Viaja-se por mil e uma razões, muitas mais do que as que nos fazem ficar onde estamos. Essas são poucas. Viaja-se leve ou pesado, alegre ou triste, com raiva ou sem ela, de olhos abertos ou fechados. Viajamos para nos encontrar, para nos desencontrar, para encontrar. Viaja-se porque se vai para a Terra Prometida ou quando se descobre – geralmente com um custo elevado – que tal coisa não existe. O objectivo de uma viagem não é forçosamente a beleza, porque entre a curiosidade e a estética os laços não são tão estreitos como tantas vezes se pensa. Viajamos para descobrir o outro – ser mítico que só existe nos livros de psicologia barata; para nos descobrirmos – esforço inglório: como disse James Baldwin, «o viajante é sempre maior do que o mundo no qual viaja». Viaja-se no tempo, seja para regressar às origens, seja para delas fugir. Como se existissem, como se as origens fossem a nascente de um rio e não os seus afluentes, como são. Da viagem traz-se mais do que se leva, por muito que se leve, se tenha esquecido o que se sabia à partida, por muito que a viagem tenha durado, ou pouco: a viagem é uma operação aritmética que desconhece a subtracção. Uma viagem tem princípio mas não tem fim: todas as viagens que fizemos prosseguem nas que se lhe sucedem e continuam no que somos hoje, acumulam-se em nós como camadas de sedimentos no fundo de um rio. Viajar partilha com viver muito mais do que a primeira sílaba. 

 II

 De uma cidade da Sibéria chamada Nakhodka onde passei quatro meses (no Inverno) trouxe uma paixão que dura até hoje; do Rio de Janeiro (no Verão) outra, que também dura até hoje. De Cape Town – uma das cidades mais bonitas que já visitei – uma paixão transformou-se em amizade e esta em nada. Há viagens assim: o que delas trazemos esfuma-se e fica só o resto: as bebedeiras, a beleza, a frequência regular de um bar sórdido, as entradas no porto, sempre tão bonitas, todas e cada uma delas com as mulheres do porto a gritar em uníssono o nome do navio, felizes por nos verem chegar. - Em breve os inspectores de redes virão inspeccionar-nos – avisara-me o capitão durante uma das suas raras e breves estadias a bordo. – Faz o que quiseres, mas não os tomes por estúpidos. Os inspectores vieram. Convidei-os para uns whiskies no meu camarote, com o pretexto – verdadeiro – de que precisava de ajuda para ganhar uma aposta (beber uma garrafa de cinco litros antes de uma determinada hora). Eles ajudaram, de boa vontade. Depois levei-os a ver a rede com a qual «pescávamos». Era nova, ainda estava na embalagem. Cortaram o plástico que a envolvia – várias camadas dele, aquilo tinha acabado de chegar da fábrica – mediram a malha e muito sérios disseram-me que estava em ordem. Para não se tomar os outros por estúpidos os outros não podem ser estúpidos, passe o truísmo. Viaja-se porque sim, porque não e porque não sabemos porquê. Um dia saí de uma discoteca em Cascais, eram três da manhã, talvez quatro. Apanhei um táxi para casa, perto de Carcavelos. A meio caminho pensei que a minha vida era estúpida, não fazia sentido: deitar-me todos os dias de madrugada, acordar ao meio-dia (estava de férias), ir passear, acabar nos copos. Fui a casa, disse ao chauffeur para me esperar, fiz um saco com roupa e «vamos para o aeroporto, se faz favor». Chegado à Portela, havia um balcão da TAP aberto. - A que horas sai o primeiro avião, minha senhora? - Sai daqui a uma hora. - E para onde vai? - Para Milão. - Dê-me um bilhete, se faz favor. Cheguei a Milão eram oito da manhã, lembrei-me de que a jovem que amara no Rio vivia provavelmente lá, não tinha a certeza, indaguei, vivia, fui tomar o pequeno-almoço a casa dela, passámos quase um mês em Milão e acabámos em Veneza, uma semana. Há viagens circulares. Nunca mais a vi, mas ainda hoje a amo e tenho pena de não poder refazer uma viagem assim, impromptu, sem querer, sem planos. «Há que ter um plano, se queres poder não o respeitar», dizem os logísticos ingleses. É verdade. Mas se algumas viagens requerem um plano, outras fazem-no elas, um plano à medida; e ao viajante só cabe adaptar-se ao que a viagem lhe preparou.

III 

De Veneza fui para Caracas, onde passei seis meses. Detestei o país, na altura ainda próspero. Trabalhei na Marinha Mercante venezuelana – fui o primeiro oficial estrangeiro com licença para embarcar em navios da Venezuela –, dormia num iate cujo interior consistia basicamente numa rede (de dormir, não de pescar) e comecei a fazer fotografia. Cape Town veio a seguir, depois um ano em Lisboa, depois as vindimas em França, vinte anos, dois filhos e um casamento feliz na Suíça – com um intervalo no Burundi, outro no então Zaire, outro ainda em Aveiro, nas dragagens do porto, outro nos Açores, três épocas. (A desordem do relato é total e propositada: não há, nunca houve ordem nestas viagens.) De Aveiro fui a Moçambique num velho cargueiro – foi a sua última viagem –, voltei à Suíça, fui para os Açores, atravessei o Atlântico pela primeira vez e sobrevivi a um ciclone no mar... Se traçasse num mapa-mundo as viagens todas que fiz, ele ficaria a parecer os rabiscos de uma criança hiperactiva na parede da sala.

IV

Pode viajar-se de comboio, de carro, de bicicleta, de barco, de avião, de burro ou de camelo, a pé, sozinho ou acompanhado, à boleia, sem sair de sua casa ou da sua cidade, pode viajar-se de todas as formas e feitios pela razão simples e irrefutável de que viajar é viver e viver é viajar. O planeta inspira e expira a cada passo que se dá, cada dia em que se vê o sol nascer num sítio e pôr-se noutro, cada montanha – real ou metafórica – que subimos e descemos, cada oceano que atravessamos, cada cidade de que descobrimos uma estação ferroviária ou se descobre para nós, como uma mulher apaixonada se despe para o homem que a seduziu. 

 V

Agustina dizia que por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica. E se tivesse razão?

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.