Não sei onde começa esta história – se no bar Aduela, no Porto, se em Milão, frente à embaixada do Brasil, onde Paola trabalhava. Nunca se sabe bem onde começam as histórias, onde – se – acabam. Não se sabe nunca sequer onde começam. Espero contudo que não seja no Aduela, onde os empregados são de uma juventude e ignorância confrangedoras. Sei lidar com a juventude, apesar da minha idade avançada; mas não com a ignorância. Consequência decerto do meu apreço pelo ensino, por aquilo a que chamo a minha “tentação pedagógica”. Gosto de ensinar tanto quanto de aprender. Por isso chego ao fim da vida e todos me detestam: tenho sempre uma resposta na ponta da língua para todas as questões, fundamentada, com as fontes à mão para quem se lembrar de mas pedir. A ignorância dos empregados do bar Aduela é compreensível: o que eu lhes peço não faz parte do passado deles. O passado individualizou-se, deixou de ser colectivo. No meu tempo – detestável expressão – toda a gente sabia o que era uma “rolha”: é aquilo que se paga quando se leva uma garrafa para um bar. Estes não sabem. Também não sabem o que é um LBV, coisa que no Porto é particularmente dolorosa.
Quando fui ter com Paola a Milão tão pouco sabia muitas coisas. Começa logo por não saber que ia ter com ela. Não sabia sequer que ia para Milão, antes de chegar ao aeroporto. Só me lembrei no avião. Paola é brasileira, o pai diplomata e desde que acabou a faculdade trabalha no corpo diplomático brasileiro. É uma rapariga bonita, alta e magra, muito doce, suave, terna. Foi a ela que dei o meu primeiro beijo, nos cimos de Carcavelos. Eu estava de costas para o mar, ela de frente, depois mexemo-nos, sei porque de repente abri os olhos e vi o mar lá ao fundo, ao lado da cabeça dela. Dei milhares de beijos desde esse dia, mas este foi o primeiro e não me esqueço dele, nunca esquecerei. Isto da memória tem que se lhe diga: um dia esquecerei a ignorância dos putos do Aduela; nunca esquecerei a minha e a de Paola naquele dia - mais tarde confessou-me que foi o primeiro beijo para ela também.
Éramos muito novos, duas crianças recém-saídas da adolescência, ela ligeiramente mais velha do que eu, poucos meses. Quando cheguei a Milão já tínhamos vivido juntos uns meses, em Lisboa, numa casa do pai dela. Só ocasionalmente nos visitava, estava colocado não sei onde. Todas as minhas relações têm ausência nelas, como alguns detergentes têm lixívia ou os vinhos taninos: estão lá, não se vêem, sentem-se, são dispensáveis (para alguns. Para mim não são). Aterrei no aeroporto, roubaram-me uma das carteiras, fui à embaixada, ela estava de folga, tive de esperar que lhe telefonassem, ela disse-lhes que sim, podiam dar-me a morada, meti-me num táxi, fui a casa dela. Era de manhã, tinha acabado de acordar, voltámos a deitar-nos, amámo-nos como se nos tivéssemos deixado na véspera e arrependido um de nós (provavelmente eu) tivesse voltado atrás. Há ausências assim, colam-se-nos à pele, não nos largam, ficam presentes. Fazem parte de nós: sou a soma de todas as ausências que me fizeram.
Paola está deitada ao meu lado. Acabo de desembarcar de um avião, cansado e cheio de sono, mas tenho dezanove anos e aquele ventre liso, duro não me deixa dormir. Sou feliz, mas nessa idade não se pensa na felicidade, pois não? A felicidade é coisa de velhos e de palermas. Os jovens seguros de si não pensam nela, tal como estes idiotas da Aduela não querem perceber o que é uma “rolha”, não lhes passa sequer pela cabeça perguntar, têm um poder em miniatura na cabeça a despontar e não o querem interromper. Com a idade deles não era assim, mas quem era? Quem se importa com isso? Na idade deles nada era como eles, porque se fosse o mundo não teria avançado, mudado, «progredido» (entre aspas porque é irónico). A idiotice não progride – não é curiosa, não pergunta – mas o mundo não é idiota. Só partes dele o são. Paola era uma mulher inteligente, muito culta, gostava de ir passear com ela pelas ruas de Milão. Vimos juntos a Última Ceia, com a porta que os frades abriram porque nessa altura o Leonardo era só um pintor e não aquilo que o tempo fez dele.
A ausência, estúpido. É disso que se trata aqui, da ausência. Nunca mais viste Paola, voltaste a Milão mas não foste à Igreja de Santa Maria delle Grazie, não te lembras de onde ela vivia, não queres lembrar-te de nada, nem mesmo daquele ventre liso e duro que não te larga a memória. Como se a ausência pudesse dividir-se em partes distintas: Paola, o ventre de Paola, os beijos de Paola, a ternura de Paola. A ausência é isso: faltarem-nos peças e não a peça. Quando nos falta a pessoa toda não lhe sentimos a ausência. Ou o lugar. Milão falta-me porque quero voltar a ir ver a Última Ceia, quero voltar a comer gelados na Galeria Vittorio Emanuele II, quero rever a ragazza bonita pobre e nervosa que um dia me pediu dinheiro, teria talvez oito, dez anos, devia ser para comprar cola, não lho dei porque com o roubo da carteira no aeroporto também eu tinha ficado desfalcado. Milão está ausente porque me ficaram estes fragmentos: sem eles, que seria dela? Do Duomo, essa coisa que me deixou boquiaberto porque pela primeira vez percebi o que o Ferreira queria dizer com «para onde tendem as catedrais». Percebi na carne, quero dizer, no corpo todo, na alma.
Paola falta-me hoje tanto quanto me falta há quarenta anos, porque nunca me deixou. A ausência é isso, não é? Aquilo que nunca te deixa.
Porto, 01-09-2020
(Para a M. H. B., com um beijo que nunca me deixa.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.