4.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 04-10-2020

Uma das características do tempo em Genebra é não ser elástico, como em Portugal, Espanha, República Centro-Africana ou St. Vincent and the Grenadines (é este o nome do país, se por acaso). Em Genebra - onde ele é mais elástico do que, por exemplo, em Zurique - se se diz «Às duas horas vamos fazer compras», às duas horas vai-se fazer compras. Ou às duas e cinco, vá. Fomos às duas e um quarto porque estamos em Genebra - mas fomos com a consciência clara de que estávamos «atrasados». Não sou antropólogo, sociólogo nem muito menos psicólogo, mas penso que há duas clivagens entre povos, mentalidades, civilizações (chamem-lhe o que quiserem): a elasticidade do tempo e o sentido de Sim e Não. Passado o Reno (ou o Ródano, mais a Sul), sim é sim e não é não. Talvez é talvez. Duas horas é duas horas, não é duas horas e um quarto ou duas menos cinco. «Antes da hora ainda não é hora, depois da hora já não é hora», dizem os suíço-franceses. Bom, com um bocadinho de folga, é certo; e essa explica explica o apodo dos suíço-alemães: »aquela malta é estrangeira». Mais a Sul e a Oeste, essas duas clivagens esborratam-se numa amálgama de horas e de sins-nãos-talvezes. 

Bom, seja como for: fizemos as compras da semana, as compras para a fondue (de queijo, passe o pleonasmo) e à noite tivemos a filha mai-lo respectivo e a G., presença obrigatória nas fondues. Faço-as sem Maizena, como «as da minha infância», repete a cada vez. Não foi a minha fondue favorita, mas estava boa. Fica.

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O que me prende a Genebra, por ordem crescente: a língua francesa, S., os meus filhos. Há algo de estranho, paradoxal, transcendente (no sentido de mágico) nesta coabitação amical. Viver o que vivíamos antes mas num estatuto diferente. A única coisa que muda é o lugar onde durmo e mais um ou outro pormenor por agora desinteressante. O que não deixa de ser fascinante: um amor que evoluiu em amizade. Uma amizade tão forte porque deu a volta toda, percorreu e balizou os caminhos todos, dos atalhos às auto-estradas.

Penso-o há muito tempo: o amor é um acto de vontade, não o resultado de um acaso. Amo todas as mulheres que amei, porque não as amei por acaso, nem porque me cagou uma pomba na cabeça enquanto dormia (eu, não a pomba).

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J. L. dizia-me há dias que o meu texto sobre Genebra era o mais «minimalista» que escrevi para a Gazeta. Tem razão, embora minimalista não o defina inteiramente: foi o texto mais factual, aquele em que as emoções e os sentimentos estavam mais escondidos. Genebra é um amor racional e eu sei que isso existe porque todos os meus amores o são. Ou foram, mas o verbo amar não tem passado. Só tem presente e futuro.

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O amor é a justaposição de duas independências. Se não for, não é amor. É outra coisa qualquer, da qual nada percebo. Um mais um igual a três: o um, o outro e os dois.

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Objecção contra a modernidade: já não há verdadeiros loucos, excêntricos. Mijar fora do penico  hoje é dizer «maricas» em vez de gay e deslocar-se de bicicleta em vez de carro. A normalidade - ou aquilo que o devia ser - é o novo revolucionário.

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De um ponto de vista estritamente epistemológico, acreditar que a Terra é plana, que o vírus é perigoso ou que Deus existe têm exactamente o mesmo valor. Apesar disso, prefiro a igreja: tem mais sentido, mais história e menos histeria, apesar das Teresas de Ávila e das Madres Teresa de Calcutá.

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Hoje li uma explicação - vinda de alguém que aprecio e respeito - para o uso de máscaras: «é uma questão de egoísmo versus altruísmo.» Transformar uma questão sanitária numa questão moral é equivalente a transformá-la numa questão política? Intuitivamente, diria que não. É pior. Contra a política posso lutar com argumentos políticos. Contra a moral, não. Tenho de usar argumentos de outra ordem: científica, factual... Amorais. Introduzir uma questão científica na esfera moral releva da má-fé intelectual, por muito bem intencionado que seja quem o faz.

Adenda: isto para não mencionar as cinco mil pessoas que até hoje morreram por falta de cuidados, mortes às quais, se quisermos aplicar-lhes categorias morais, só podem qualificar-se de hediondas. Tal como, de resto, o desinteresse das pessoas que só vêem a Covid. 

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