Antigamente, no Gambrinus empilhavam-se pires para se manter a conta dos gambrinus que lá se bebiam. É uma forma bonita de contar os copos, mais do que assentá-los num papel ou num computador. Não sei se ainda hoje é assim: não vou àquela casa desde o grande terramoto de 1755, mas hoje pensei nela. A minha forma de contar os ti'punch que bebo é manter dentro do copo os quartos de lima que fui usando. O princípio é o mesmo, se bem o método dos pires seja mais bonito. Hoje pus o Mingus no iucoiso e fui bebendo ti'punch - não ao ritmo da ira do homem, seria demasiado frenética - mas ao meu ritmo, melancólico, ritmo de prisioneiro.
A liberdade absoluta é a prisão absoluta e tal como esta, aquela não existe: todos estamos presos a qualquer coisa, seja ao John Zorn que agora oiço, seja aos afectos, ao dinheiro (ou falta dele), a um corpo e uma mente que se esperam ou desejam, seja ao que for que erijamos em prisão. «Cada homem escolhe as prisões que mais lhe convêm e é a essa escolha que se chama liberdade».
A ironia do Zorn faz-me rir. Aí está outra prisão: o humor. É uma das piores, porque simultaneamente nos prende e nos liberta. Prisão chave das outras prisões todas.
Estou preso em Lisboa pela razão simples de que não é aqui que devo estar, mas é aqui que tenho de estar. Tanto gostaria eu de resolver de uma vez por todas estas duas dicotomias: entre o que tem de ser e eu gostaria que fosse, entre o que tem de ser e eu que eu gosto que seja. Lisboa está triste, mas assim estará Palma, assim estão todas as cidades vítimas desta loucura. Cada vez acredito mais nos mecanismos neurológicos das religiões, sejam elas sacras ou laicas. Não é de certeza por acaso que se reage hoje a um vírus como se estivéssemos na Idade Média. A diferença sendo que ontem se invocava Deus ou o demo e hoje se invoca a ciência - da qual a maioria sabe tanto como sabia de Deus há uma dúzia de séculos. O denominador comum é o medo e esse medo não nasce do acaso. Antevejo com prazer um regresso à leitura de não-ficção. A neurologia deu passos de gigante desde o Changeux, o Laborit, o Monod, o Jacob (e os outros todos que li na mesma leva e não são dessa área). Mas sim, vou voltar a essas leituras, vou investigar os novos autores dessas áreas, vai ser bom. Je suis devant ce paysage féminin / comme un enfant devant le feu vai tornar-se Je suis devant cette perspective de connaissance / comme un enfant devant le feu. Venham eles, assim me volte a vista.
(A lista dos comportamentos indignos, etc. é vasta e inclui coisas como «torce[r] a cabeça de forma estranha», «não cessa[r] de apontar ora para os dedos ora para si mesmos», etc. O mais bonito vem no fim: «outros ainda estão sempre a rir a cada palavra que dizem, como se fossem meninas namoradeiras ou palhaços sem compostura. Todavia, o autêntico decoro manifesta-se num porte sóbrio e grave, aliado a uma atitude jovial.» (Partilho inteiramente esta opinião, que continua com o «Não quero dizer...» acima mencionado.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.