14.1.21

Mulheres, dias

"Não sou grande espingarda. Nunca fui. Tenho contudo a vantagem de não me importar muito com isso. O filme está quase a acabar e gosto de finais tristes. Enfim, não exactamente tristes: que correspondam à história, que não dêem grandes piruetas para acabar, como os contos do O'Henry ou um malabarista de circo. Por isso me deixo ir sem sobressaltos por esta rampa abaixo. Sei o que me espera lá em baixo. Todos sabemos: já todos estivemos mortos, antes de nascer.  Andamos às voltas. O ponto de chegada é o ponto de partida. Se fores muito esperto, a diferença é que começas a descida mais alto. E se calhar demoras mais tempo a cair, é possível. Ou cais mais devagar ou a rampa é mais longa.

Passei a minha vida toda rodeado de gente inteligente. Sabes aquele estratagema das mulheres bonitas? Têm sempre uma amiga feia com quem gostam de se mostrar. Realça-lhes a beleza e poupa-lhes competição. Pois eu era o burro dos meus amigos intelectuais. Mostravam-me, deixavam-me falar e quem brilhava eram eles. Quem seduzia as miúdas mais bonitas, mais interessantes, mais estimulantes, mais tudo. A mim calhavam só  as que gostavam de felações e as faziam bem. Durante toda a vida isso revoltou-me, mas agora percebo que estava enganado. O que no fundo é natural: para alguma coisa se é burro e não é para acertar. Se acertasse seria como eles. Às vezes reunimo-nos para conversar e beber uns copos. Não lhes invejo as vidas, a nenhum deles. São mais ricos e tiveram mulheres mais bonitas? Sem dúvida. Mas quem deu as melhores quecas fui eu; e o que levas tu daqui, diz-me? Nada, se não as memórias de um corpo enredado no teu. Um ou vários, que foram muitos, graças a Deus. Já lá vai, tudo isso. Mora no largo da memória e nunca sai à rua. Foi o que mais me custou, quando chegou a velhice. Os outros escreviam, liam, iam a conferências, sei lá. Eu não: sem uma mulher ao meu lado sentia-me como se me tivessem cortado os braços. Como o guarda de um jardim zoológico sem animais. Caçador a quem o elefante tivesse esmagado a arma. Durmo sozinho nesta savana vasta e vazia. Os últimos elefantes deixaram-me há anos, alguns com pena, outros com riso. Custou-me bastante a aceitar, esse sossego. Agora regalo-me nele e gozo com os meus amigos: "Para vocês, nada mudou", digo-lhes. "Para que vos serve a velhice? Eu tive de reaprender a viver, enquanto vocês se limitaram a esquecer o que nunca souberam. Dei trabalho ao meu touro furioso. Esgotei-o. E vocês?" Nunca sabem bem o que me responder."

A campainha da porta toca. O senhor levanta-se e vai abrir. É a mulher a dias, uma jovem peruana de trinta anos a quem deu o trabalho por causa dos olhos, que o fazem chorar.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.