21.2.21

Barcelona, 1980, para a Rosa e para o Carlos

Fui a Barcelona pela primeira vez em 1980 (ou 81, pouco importa). Fiquei em casa de um casal que conhecera nas vindimas em França. Ele era basco, baixinho, moreno como já não se devem fazer muitos assim. Lembro-me da barba - de manhã, quando nos encontrávamos para o pequeno-almoço, pensava que não havia lâmina no mundo capaz de fazer daquilo uma pele. Ela era alta, loira, alemã até ao tutano. Ele falava basco, espanhol e francês. Ela, alemão e inglês. Compreendiam-se porque ambos eram estudantes de mímica na escola de circo: falavam por gestos. Quando digo «falavam» era isso mesmo: todas as conversas eram mimadas. Viviam no Barrio Chino, um bairro que desapareceu da geografia e da memória da cidade, mas era o equivalente do nosso Bairro Alto antes do Frágil. Era um apartamento partilhado - éramos uns sete ou oito, cada um de sua nacionalidade e cada um de sua profissão, mas todos «marginais». 

Íamos jantar fora quase todos os dias, nas várias combinações possíveis de oito. Nos restaurantes que frequentávamos ainda se bebia vinho por porros.  O grau de bebedeira media-se não pela incoerência do discurso ou pela dificuldade em andar numa linha recta, mas pela quantidade de nódoas na camisa. Era um grupo feliz: não sabíamos que um dia tudo aquilo desapareceria, como o Bairro Alto desapareceu.

Um dia, ela disse-me «Hoje vou treinar um exercício de corda bamba, queres vir?». «Claro que sim». Fomos para o que hoje sei ser o parque Güell. Elas (só havia raparigas) puseram a corda entre dois pilares de uma pérgola, mudaram de roupa e começaram a ensaiar o número. Ninguém usava soutien. A minha vida é feita de visões - algumas prospectivas, outras retrospectivas - e essa é um das que me ficará até morrer. A rapariga era por assim dizer bem fornida de seios e ver aqueles dois globos nus por cima da cidade é uma das situações em que mais perto fiquei da experiência religosa, um êxtase que não devia andar muito longe dos de Teresa d'Ávila. Nunca mais os vi (refiro-me ao casal) e tenho pena. Aposto que com o tempo ela aprendeu espanhol e ou se separaram ou ficaram um casal como os outros.

Um dia fui ao cinema, ver Elephant Man. Era numa sala longe do centro, uma das raras que passavam filmes na versão original. Saí compreensívelmente abalado. A história não é fácil, muito menos para quem se sentia uma espécie de  Elephant Man por dentro. Do outro lado da rua havia um bar, chamado - outra das coisas que não esquecerei nunca - Casa Quimet, Bar de las Guitarras. Desapareceu, vítima de um incêndio. No tecto tinha trezentas violas - não é uma ordem de grandeza, é o número exacto (tanto quanto a memória me permite). O princípio era simples: todas as violas estavam em estado de ser tocadas; qualquer pessoa podia entrar e pegar numa, mas devia tocar só para a sua mesa. Quando lá cheguei ainda era cedo, só havia três ou quatro mesas ocupadas, cada uma delas com o seu guitarrista. Sentei-me ao balcão e pedi uma sangria (nesse tempo ainda eram bebíveis). À segunda ou terceira o empregado do balcão perguntou-me «És português, não és?» «Sou». Fez um anúncio à sala: «Malta, temos aqui um português» e de seguida as mesas começaram a tocar, em uníssono, canções portuguesas (às quais nunca fui muito sensível, manda a verdade que o diga). Lembro-me particularmente de Uma casa portuguesa, mas houve muitas mais. Sentado ao balcão, chorava copiosamente. Quando acabaram - a coisa durou uma boa meia hora (de novo, sujeito aos aléas da memória) - fui falar com os músicos e perguntei-lhes como conheciam tantas canções portuguesas. Responderam-me: «Nós adoramos Portugal. Vocês conseguiram aquilo que nós não conseguimos.»

O Barrio Chino desapareceu: só alguns velhotes o conhecem ainda e sabem onde ficava (em baixo da Rambla, sobrepondo-se parcialmente ao que hoje é o Barrio Gótico). Barcelona tornou-se um paraíso de carteiristas. Não perdeu a mistura de ingenuidade e manha que fazem do Mediterrâneo o Mediterrâneo, mas tornou-se provinciana, rasca, estúpida. Irritante. Ainda gosto de lá ir - desde então, voltei lá algumas cinquenta vezes, com estadias do muito curto ao relativamente longo - mas não consigo impedir-me de pensar que pôr fronteiras onde não as há é uma das actividades mais estúpidas a que os homens se podem dedicar. 

E tenho pena de não ver pelas ruas camisas cheias de manchas mais ou menos vastas de vinho tinto. O dono de uma das tascas aonde íamos oferecia-nos - no fim do jantar - um porro, se o conseguíssemos beber sem nos sujarmos. Nunca conseguimos, claro. Eu falava as duas línguas - inglês e francês - e estragava um pouco a magia dos gestos (não era linguagem gestual, era mesmo mímica). Não sei se a escola de circo ainda existe. Sei que nunca mais vi seios ao léu no parque Güell e lembro-me do choque que senti - em 2002 ou 2003 - quando descobri que Barcelona deixara de ser uma cidade do mundo para ser uma cidade de província. As revoluções trazem em si o seu fim. A entropia é o estado natural do mundo e a neguentropia a excepção. As coisas são o que são e o que foram é acessório, um adorno, um motivo para escrever textos disparatados a pessoas que nos são queridas. 

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