23.2.21

Por assim dizer

As palavras aparecem ao acaso, como gotas de tinta num quadro de Pollock. Azul. Águia. Bico. Voar. Compreendo que assisto ao nascimento de uma história. Pouco a pouco vão encontrando o seu lugar, a sua ordem. Do Pollock a Mondrian o caminho é longo, estreito e sinuoso, ora sobe ora desce. Alguém está no bico de uma águia, a voar num céu azul. Falta saber o destino, quem é esse alguém, que faz pendurado no bico de uma águia, quem é a águia. Será uma metáfora? E a pessoa, também? Poderá substituir-se pessoa por sonho, águia por tempo? Por visão? Um sonho que ao longo do tempo vai subindo escadas que antes descera de escantilhão? Pergunta importante: esse alguém  - esses sonhos - vão nus ou vestidos? Quem veste quem - os sonhos são a roupa ou a realidade é a roupa? Os sonhos vestem o tempo ou este veste-os? A águia é nova ou velha, gasta, cansada de voar nesse azul com os sonhos no bico? A história constrói-se a si própria,  segundo uma lógica interna por enquanto indecifrável. Conhecemos-lhe as peças, mas ainda não o destino. O que vemos dela é uma pequena porção da totalidade. Devemos deixá-la repousar, tomar forma, descansar, tomar forma, sonhar. É isso: a história sonha-se. Alguém a sonha, é sonhado, voa num céu azul, limpo pela chuva que há pouco acabou. Mais uma peça: a chuva. Outras virão, ao longo do dia, como se o puzzle começasse com três ou quatro peças e outras se lhes viessem juntar, pouco a pouco. Olha-se para cima, vê-se o que é, imagina-se o que será, mistura-se tudo. Um dia, um ninho aparecerá. Um dia, o sonho estará escrito. Vestido, por assim dizer.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.