Dos vários tipos de ventos, o mais interessante - a meu ver, claro. Não vejo pelos outros - é o vento catabático. É um vento provocado pela gravidade. Acontece nas montanhas ou nas costas montanhosas. Uma vez passei uma noite à deriva num dinghy minúsculo por causa de um desses ventos, no Portinho da Arrábida. É uma massa de ar que perto dos cumes arrefece, fica pesada e cai. Como se fosse uma pedra: vai pela encosta abaixo, violentamente. No Portinho acontece por volta das onze da noite - são quase sempre nocturnos. Eu ia para bordo no bote de borracha, com um motor talvez de dois cavalos. Quando guinei para o barco o vento pegou em mim e levou-me. O motor não tinha força para o contrariar. Felizmente lembrei-me do baixio que circunda a baía e quando calculei que estava em cima dele pus o motor a fazer de ferro, amarrado pela bossa. Aguentei ali até a maré subir, eram seis da manhã. Depois fui à rola. Pus o motor dentro do bote e lá fui, já o vento estava mais calmo. Às dez uma traineira apanhou-me e levou-me para Setúbal. Creio que foi a primeira vez na vida que fiquei em choque. Aguentei-me até estar a bordo da traineira, explicar o que se passara e dar o nome e número de telefone do armador (antes dos portáteis tinha uma lista de números na memória). Depois desmaiei e fui assim até casa do senhor, em Lisboa. Viera buscar-me a Setúbal. Por inacreditável que pareça, conseguira dormir durante a noite. Acordava a intervalos mais ou menos regulares para esvaziar a água que entrava - fazia-o com a toalha, que ensopava e espremia até estar a água estar esgotada. Depois deitava-me, todo encolhido para manter o calor (e porque o bote era pequeno) e dormia até aquilo se encher outra vez. Calculo que os períodos de sono eram de meia hora, mas não tenho a certeza.
A última vez que acordei já era dia e já tinha saído de cima do baixio. Não sei onde é que a traineira me apanhou, mas foi bastante a sudoeste. Foi uma sorte, uma das muitas que tive na vida.
Hoje lembrei-me desta história porque estes últimos dias fui "vítima" de um vento catabático metafórico que não me levou à rola - antes pelo contrário, levou-me para um porto seguro. Vítima está entre aspas porque ser vítima da sorte é um oxímoro. Estes dois últimos dias foram um catabático bondoso, auspicioso, maravilhoso. E trouxeram-me à memória a noite em que me lembrei de fazer do motor um ferro, em que tirava a água do bote com a toalha, em que me forçava a dormir porque não havia mais nada para fazer, em que me mantive de pé até à traineira me ver, a agitar a toalha. A nortada arrastava-me para fora e em breve deixaria de haver traineiras.
Há ventos catabáticos bons e generosos. Mesmo que sejam metafóricos.
(Para a M. M., com gratidão.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.