12.5.21

Magma, vida

Questão de um gajo se ir deitar e dormir, sem dúvida. Saltar à corda com os lençóis, sonhar com os sonhos, pensar que se dormir o mundo não acaba, que entre um par de mamas a voar e o Miles Davis nos ouvidos mais vale o tinto no copo, que amanhã só é diferente de ontem porque ontem morreu e amanhã está por nascer, que estas coisas todas misturadas não fazem uma vida e separadas tão pouco. Nada faz uma vida senão a vida ela própria, faz-se a si mesma como uma mulher nua na cama ao teu lado. Davis, vinho, a vaga ideia de que o tempo é um andaime tão fino como os de Klee e nele somos os funâmbulos instáveis, quase transparentes que desenhou como se pintasse ou pintou como se desenhasse. Façamos um círculo: Klee, Hopper, Miles... Quem estaria no resto das inúmeras diagonais? Garcia Márquez, Yourcenar, Beckett, Borges, Hildegarde, Cohen... Pouco importa. Só interessa saber que no centro estás tu, desolado e nu, desconsolado e feliz (não conheces outra definição de felicidade): o centro do círculo que te povoa os dias, as noites, os sonhos, a memória, o futuro.

O futuro: como fazes para que seja mais hospitaleiro ainda do que o passado? Pensas nos andaimes teóricos que te sustentam os dias: livros, filmes, peças de teatro, músicas, esculturas, teorias, longas conversas na cozinha, à lareira ou ao balcão dos infinitos cafés por cujo chão te arrastaste. Olhas para as horas da noite como se fossem diferentes das outras. 

Sabes que vais morrer e nada fazes nem para retardar nem para acelerar esse momento. Espera-lo calmamente sentado num canto da vida. Que nome dás a esse canto: presente? Passado? Futuro? De repente, descobres que o futuro ocupa demasiado espaço na tua vida e decides trocá-lo por dose e meia de passado e meia de presente. «Em copos separados, por favor», dizes ao barman barbudo e vestido de branco que te serve. Pensas nas mulheres que cobiçaste e não tiveste, nas que tiveste sem quereres, nas palavras que te inundaram as casas todas onde viveste, nas estrelas que te intrigaram, nas noites que passaste no mar a pensar que «não havia ninguém entre ti e a Lua», a decidir que não há mulher que valha um mar mas que um mar as contém todas, felizes e belas. 

Miles, o vinho e um corpo, seja o teu seja outro qualquer dos que te povoam o passado: não escolhas. Engloba-os todos nesse magma a que chamas vida, decerto por não saberes que outro nome dar-lhe. E lembra-te: cada vez que disseres ou disseste «amo-te» foi a esse magma que te dirigiste.

(Para a J. M. V., que introduziu sentido neste caos.)

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