31.7.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2021

Hoje comprei rúcula para o jantar. Não é de todo a primeira vez que compro vegetais, longe disso. Quando morava no Príncipe Real, por exemplo, comprava frequentemente verduras «bio». Inicialmente porque o mercado era mais perto do que o supermercado, depois porque descobri com prazer que as coisas «bio» (aspas porque cito) duram mais tempo no frigorífico. Hoje comprei rúcula e o que tornou essa compra interessante é que tive de escolher entre isso e batatas - nos períodos de maré baixa a conjunção «e» é substituída pela «ou», quando vou às compras. Acho que tenho rúcula para um ano (enfim, o P. tem, eu vou-me embora na segunda), a julgar pela quantidade que hoje comi. A minha dependência do parmentiano tubérculo está a diminuir, parece. 

Enfim, uma andorinha não faz a primavera. Vejamos, antes de tirarmos conclusões apressadas, digo a mim mesmo e mim mesmo concorda.

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Decidi guardar o quarto durante o mês de Agosto, apesar de só precisar dele uma noite por semana. Não me apetece andar a saltar de camarote em camarote, por um lado; e por outro, ajudo o P., que a cada dia aprecio mais e bem precisa. 

P. é professor de inglês «de nível elevado», especifica. »Os níveis mais baixos são muito aborrecidos». Antes da Covid dava vinte horas de aulas por semana (em casa). Hoje dá duas ou três. É um mestiço jamaicano dos seus cinquenta e muitos. Regista quase tudo o que se lhe diz, basta repetir cerca de vinte vezes cada coisa. «Quando é que te vais embora?», pergunta, dez minutos depois de eu lhe dizer que me vou embora segunda-feira. Ao longo do dia a pergunta repete-se, amanhã idem e na segunda, quando eu lhe disser «Ciao, P., vou-me embora» fará uma cara espantada e dir-me-á «Oh, vais-te embora? Quando regressas? (Outra pergunta à qual já respondi umas boas dezenas de vezes)» «Na sexta ou no sábado, P.» 

Ao princípio exasperava-me um bocadinho, mas depois percebi que não era exasperação, era inveja e a coisa passou. Se há coisa que não sou é invejoso e no P. eu invejava duas delas: a capacidade de não ouvir e a naturalidade com que o assume. Imagino que seja um óptimo professor. 

Nunca percebi bem de que vive - alimentarmente, quero dizer. Passa os dias sentado na mesa  na qual dá aulas, interessa-se pelos resultados dos jogos olímpicos (isto é, pelo número de medalhas que o Reino Unido obteve), lê bastantes jornais digitais, pergunta-me (todos os dias) se eu leio o Guardian (ou a BBC ou o Telegraph), todos os dias lhe digo que não, adormece frequentemente sentado à mesa. Nunca o vi nem comer nem sinais de que vá comer ou tenha comido. O frigorífico está sempre cheio, mas parece-me que das mesmas coisas. Hoje encontrei ovos cuja data de prescripção era Agosto de 2020. Às vezes conversamos - sobre a Covid, sobre política «não sou de esquerda nem de direita», disse-me há dias - concordamos em que as independências das colónias foram uma tragédia. Traz-me à memória aquela definição das amizades inglesas, que «começam sem confidências e continuam sem diálogos». Vem de uma família da alta burguesia jamaicana, foi educado em colégios católicos, fala um inglês maravilhoso - não surpreendentemente, claro - e simpatizamos bastante um com o outro. Baixei um bocadinho o preço do quarto para estas semanas que aí vêem e hey, presto!, tenho um quarto para as sextas-feiras e ele um hóspede ausente.

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O concurso internacional de regras idiotas continua. Hoje teve mais uma inscrição, portuguesa: as discotecas podem abrir, mas não se pode dançar. Faz-me lembrar a história do bordel de Porto Amélia, hoje Pemba, onde um capitão me quis levar. O imediato opôs-se terminantemente (eu era filho do sub-director da companhia, argumentava ele). Seguiu-se uma negociação cerrada entre os dois e acabaram num compromisso: eu ia, mas não beneficiaria dos serviços das senhoras (eram só duas, uma morena e a outra loira). Passei duas ou três ou quatro ou uma quantidade infinita de horas sentado na sala de estar do lugar, com elas a passar por mim a cada troca de quarto (previamente combinadas entre capitão e imediato), a apalpar-me o membro que estava, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, mais duro do que o obelisco da Place de la Concorde e a dizerem «coitado do rapaz».

Irei ao Roterdão, D., e lembrar-me-ei desta história quando estiver a comer uma sandes de arenque fumado.

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Parece que segunda-feira o P. vai para a água. Não sei. Agora a complicação é com a cor da tinta encarnada. Ficou de lá ir um colorista (os indivíduos que fazem as misturas de tintas de forma a obterem o tom exacto. Não fazia ideia de que tal profissão existe, sequer). Não tive telefonema nenhum hoje, o que não é de admirar porque pôr esta malta a trabalhar aos sábados é mais difícil do que levar o Papa ao bordel de Porto Amélia, hoje Pemba.

O P. faz-me pensar naqueles paus ensebados dos concursos das aldeias: cada dez centímetros que se sobe baixa-se um metro, mas por um milagre qualquer, não-matemático, há quem chegue ao topo. Eu sei que o vou subir até ao último milímetro. Só me pergunto é como, com tantas descidas a cada etapa.

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