Passeio por Almeria como um cego por um labirinto de rosas: vim a esta cidade pela primeira vez há quarenta anos e desde aí tenho vindo esporadicamente. Não a conheço - hoje tive de perguntar onde é o casco viejo (à vinda descobri sítios dos quais me lembrava claramente. São rosas, senhor).
O sherry é sublime. Não pergunto a marca: devemos resistir à tentação de tudo saber, de tudo cobrir com palavras.
Continuo a ver montes de gente com máscara na rua. Também da tentação de me chatear fujo, feito cobardola das emoções. Se querem parecer idiotas - ou mostrar que o são - pareçam, mostrem. Só me aborrece que tantos sejam jovens. Que fizemos nós desta geração, nós agora velhos? Como nos transformámos de revoltados reichianos, debordianos, marcusianos em carneiros hiper-protectores, de bondade e medo hipertrofiados, carneiros a fazer carneiros?
[Tinha razão.]
No porto de Soller os restaurantes de que gosto ou me sugerem estão cheios. Meti-me num táxi e venho para Soller. O restaurante que o taxista me sugeriu também está cheio, tão cheio de gente como eu o estou de fome. Arranjo outro, ao acaso. O início não augura nada de bom: não tem palos e de vermutes só Martini. Vamos ver: quantas refeições começam mal e acabam bem? Muitas, mais do que as que posso contar.
Ainda é segunda-feira e já estou cansado. Verdade seja dita, não tenho muitas razões para isso. Os clientes são muito bons, uma família de franceses, judeus «semi-praticantes» (aspas porque cito), pai, mãe, duas miúdas de doze e dezasseis anos. Amanhã chega o filho de dezoito, vem de Chipre. Ele é matemático [não é, é engenheiro], deve trabalhar em finanças [é chefe de uma empresa familiar]. Ela, médica. Falamos de Covid, claro, uma conversa civilizada, polida, educada, interessante. Tristes os tempos em que se tem de assinalar ter-se conseguido manter uma conversa educada sobre opiniões divergentes. O único momento de ligeiríssima exaltação foi entre a senhora e ele. Ela é visceralmente contra a vacinação das crianças, não gosta de ouvir dizer «os números, etc.» que o marido usa amiúde, acha que não se deve fazer experiências com crianças e menos ainda se essas crianças forem os filhos. Disse-lhe que na minha opinião aí os governos tinham atravessado uma linha vermelha e que a maioria das pessoas reagiria como ela. «Talvez não», respondeu, vejo agora que cheia de razão.
A verdade é que não me interessam. Resta saber se por questões de estética - a boçalidade é feia - se por ciumes, inveja, dor de cotovelo. (A pergunta é retórica, claro, mas não tenho nada contra a retórica.) As duas da semana passada eram mais calmas (estavam com os pais) e ainda mais pirosas. Alguém devia explicar às senhoras que um calção de bikini a entrar pela raia dentro passa a fronteira do bom gosto e é capaz de desentesar um elefante. (Refiro-me à peça de roupa conhecida por fio dental, designação abominável s'il en est.)
O cor-de-laranja invade tudo, à medida que o Sol se afunda por detrás das árvores. O azul do céu, o verde das árvores, o branco das rochas e a cor indefinida da água ligam-se como se o cor de laranja tivesse desbotado.
(Cala Torqueta)
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