14.9.21

Diário de Bordos - Lisboa, 14-09-2021

Circular em bicicleta na cidade tem inúmeras vantagens. Vou enumerar três. (Há aqui um subtil jogo de palavras - ou de vogais, para os mais preciosistas -: troca-se uma vogal e a palavra gira de cento e oitenta graus. Espero que tenham visto e apreciado.) As três qualidades da circulação em bicicleta que seleccionei para hoje são:

a) Podemos andar à velocidade que nos apetece. Não há sinais a limitar-nos a velocidade máxima ou mínima, não há filas de carros cujas velocidade temos de respeitar. Nada disso. Rolamos tranquilamente na ciclovia - ou na via, tout court - e aquela malta das caixas verdes ou amarelas com bicicletas eléctricas passa-nos como quer. Avisa-nos gentilmente com um toque de campainha ligeiro, nada agressivo e passa. 

b) Não precisamos de nos preocupar com a EMEL. Uma bicicleta estaciona-se praticamente onde se pode estacionar e ninguém - salvo os condóminos mais idiotas - nos vem chatear. E mesmo para esses há remédio: deixa-se a burra na rua ou subimo-la para o apartamento.

c) O prazer, o simples mas rigoroso prazer de pedalar pela - por exemplo - Baixa de Lisboa, ver lentamente prédios que vimos centenas de vezes, reconhecer apartamentos onde amámos ou deixámos de ser amados. Em espanhol pedalar diz-se pedalear e aquela vogal faz uma diferença enorme, prolonga a palavra e o prazer, adoça-os, por assim dizer. Prolonga-os. «Pedalar» é das raras palavras da nossa língua que podia ter mais dez sílabas e ficaria a ganhar com isso. 

Pedalar é uma das raras actividades físicas que acrescenta prazer à existência (são três, na verdade. A outra é a condução de uma embarcação de vela).

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Um dia terei tempo para ler todos os livros que compro. É para isso que os compro: para ter tempo de os ler, um dia.

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Continuo sem saber o que me faz ser desta cidade e não de outra qualquer porque não consigo definir o que sinto quando as ruas da Baixa desfilam por mim, parado na minha bicicleta e me olham, cumprimentam, dizem «Olá, Luís. Por cá de novo? É bom ver-te.» Como explicar este sentimento? Ficando calado, suponho. Retribuindo o cumprimento. 

Ouvindo Philip Glass enquanto se rememora o dia, que decorreu ao mesmo ritmo.

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A expressão francesa para «estou apaixonado» é «je suis tombé amoureux». Obviamente prefiro-a: «caí» transmite melhor a sensação de surpresa. Caí amoroso. Tropecei no amor. «Estou» é demasiado estático para este sentimento extático - mais uma palavra que muda completamente mudando-se-lhe uma letra. Êxtase. Amor. Espanto. Como traduzir isto?

Como supra: uma aflitiva falta de palavras. Ou então uma só: amo-te. O mundo que se arrepie. Eu já estou.

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Mais um almoço na Merendinha do Arco. Desde as pataniscas - as melhores de Lisboa e arredores, incluindo nestes arredores o Minho e o Algarve - até ao xiripiti tudo é perfeito. Desde a simpatia dos funcionários da casa até à companhia, levemente abordada no parágrafo acima deste, passando pelo bacalhau à Braz, arrozes de polvo e doce. Abençoada seja a D. Fátima, abençoada seja esta Lisboa de que sou, de que serei sempre, abençoada esta flor que me picou e prendeu como se dela eu fosse a cor. Ou ela o nome e eu o espinho, vá saber-se.

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A Ler por aí... mudou para a Casa Independente. De todas as livrarias pequenas que conheço - são muitas - é a mais bonita. De todas as livrarias bonitas que conheço - ditto - é a mais pequena. Duas poderosas razões para a visitardes. Das cinco às nove da tarde, quase todos os dias: faltam o domingo e a segunda-feira. 

(Esta apreciação é completamente objectiva, independente, não tem nada que ver com a intensa amizade que me liga à Margarida e muito menos com a admiração que tenho por ela.)

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