19.9.21

NÃO SEI - LISTA NÃO EXAUSTIVA

Estou no restaurante Zebras do Combro, sito à calçada do Combro e penso que tenho de ir para casa. A Coluer espera-me, amarrada a um poste. Contudo, o cansaço e o ziguezagueante raciocínio levam-me pelos carreiros da vida, forma simpática de me manter aqui sentado. Para fazer qualquer coisa - seja o que for - é necessário um misto de tempo, vontade e meios. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, estes são fundamentais: procurem levar um contentor de Lisboa a Nova Iorque num barco a remos ou numa prancha de SUP e verão o resultado, por muito tempo e vontade de que disponham. «A boa ferramenta faz o bom operário», diz um provérbio judeu aplicável qualquer que seja o sentido que se dê a ferramenta.

Ou seja: ponhamos provisoriamente de lado o terceiro termo da equação. É uma constante, não é uma variável. Tenho os meios para ir para casa: a supramencionada Coluer, bicicleta preta, quadro clássico feminino, sete velocidades, cesto dianteiro e gira como o dono, acabo de explicar a uns senhores cabo-verdianos que ma gabavam há pouco. Tenho os meios, tenho tempo, falta-me a vontade, é tudo. Tendo dois dos três ingredientes, exploro nos tais ziguezagueantes labirintos todas as outras coisas que tenho de fazer.

O restaurante Zebras é horrível. As únicas coisas que o salvam são a cozinha, a simpatia do pessoal, a decoração - toda de azulejos - a localização (perto do Largo Camões) e a dimensão (pequeno). Além disso, nada. As favas, por exemplo: sublimes. Quem faz favas assim no Verão vai para o céu na Primavera (alegoricamente falando, claro. Espero vivamente que seja daqui a muitas primaveras). O igualmente sublime bagaço da casa. O preço deste frugal jantar: qualquer calvinista o aceitaria sem ser submetido a tortura. Que tenho de fazer, além de pedalar até casa, confortavelmente sentado numa poltrona com duas rodas, dois pedais e um guiador? Escrever estes textos, por exemplo. Tudo me falta, mas à vez: ora é o tempo, ora a vontade. Os meios não: papel, caneta, telefone portátil e computador há sempre, por atacado ou a retalho. Tenho de responder à D.: falta-me o tempo. Tenho de... Falta-me a vontade. Enfim, não quero maçar os leitores com as minhas divagações pelos labirintos do dever: a lista é interminável. Ora me falta isto, ora aquilo, ora tudo ao mesmo tempo.

Retomemos o caminho, antes de parecemos formigas ébrias com um ataque de solipsismo: não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí. Pergunto-me o que levaria uma formiga a perder-se? Primeiro, como seria possível em termos físicos. Segundo, que sobraria da psique de uma formiga se se perdesse? Nada, claro. Nem da psique nem de mais nada. Uma formiga perdida perde-se em todos os sentidos do verbo perder-se: nada sobra, no fim. Não é o nosso caso: perdemo-nos por estas veredas mas encontramo-nos algures na Baixa para um último copo, espero, se possível na ginjinha da rua das Portas de Santo Antão.

Raio do texto está a fugir-me, como a formiga individualista. Problemas de quem leu Sterne em jovem, o que não foi o meu caso, prova provada de que a minha infância não foi tão feliz como a imagino. Falava simultaneamente de dois temas: o restaurante Zebras do Combro – está arrumado: é excelente; e a mistura de componentes de que se necessita para fazer qualquer coisa: tempo, vontade e meios. Creio também que algures aí pelo meio falei da fatiga – a que outros chamariam exaustão, mas esses são ou exagerados ou meninos urbanos poliamorosos. Não sou nem uns nem outros. Exaustão tem para mim o significado que sempre teve: vazio, cheio de coisas para fazer. Talvez não fosse má ideia rever o conceito. Se não tiveres nada que fazer, não podes estar exausto, porque a exaustão tem a ver como futuro e não com o passado. Não estás cansado porque fizeste, mas sim porque não podes fazer mais nada. Só se está exausto ab ante: antes de fazer qualquer coisa, não depois.

Bom, passemos. On s’en fout. O que é importante, no fundo?

Resposta: importante é o que queres e consegues fazer depois de estar exausto. Depois de estares morto, de não saberes como te chamas, onde nasceste ou onde queres morrer. Não há melhor critério para delinear «importante»: o que fizeste depois de morto. (Antes disso tudo foi secundário, aceita-o de uma vez por todas.)

Por que caminhos andarão as formigas a direito?

Estamos a falar de carreiros labirínticos. De coisas que partem de um restaurante na calçada do Combro e acabam na exaustão, no cansaço – nos cansaços: o físico e o metafísico, do qual tão bem falou o Álvaro, amigo meu íntimo do coração.

« Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.»

 

Depois, vem o verso chave:

«E a luxúria única de não ter já esperanças?»

Reconheçamos: ele estava menos cansado do que eu. «Esperança» é uma palavra banida do meu léxico. Já «Luxúria» não sei. A luxúria ou é destemperada ou não é. Nada espero e consigo que isso seja diferente de «De tudo desespero.» Como naqueles quadros do Klee, eu sei: a relação entre o nome do quadro e o que ele dá a ver é muito ténue e reclama grande participação de quem o vê.

Bom, tentemos ordenar isto: os bons jantares terminam num labirinto fantasmático, cansaço metafísico, carreiros ondulantes ou simplesmente na espera pela senhora que decidiu agraciar-nos com o seu amor e receber o nosso?

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Não sei.

As discussões devidas à minha recusa em usar máscara diminuiram em quantidade e aumentaram de alacridade. Suponho que do meu lado há cada vez menos paciência; do lado de quem tenta implantar regras absurdas também, porque há cada vez mais pessoas a recusar cumprir as tais regras.

Isto não é o resultado de um estudo «científico». Talvez seja apenas a minha esperança a parir, uma vez mais. Parece um peixe de que todas as ovas dão origem a um descendente: a minha esperança tem uma prole infinita, pare ao menor pretexto, emprenha por autogénese, não pára.

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A Covid tocou os fundamentos da nossa sociedade, minou-os (mas não de morte. Cf. supra). Infelizmente a verdade é que isto não começou com o maldito vírus, vai muito mais longe, muito mais atrás. O C. M. F. diz que vem do fim dos impérios. Não o creio, mas tão pouco sei onde começou o pêndulo a oscilar no outro sentido. Talvez na segunda guerra mundial, quando a ciência eclodiu em Nagasaki e em Hiroxima? Talvez na primeira, com o gás mostarda e a aviação?

Será que vai ser precisa uma nova guerra para pôr o pêndulo a mudar de direcção?

Pergunta: o pêndulo pára no seu ponto mais baixo. O que lhe garante que ele manterá o seu movimento? De onde vem a energia necessária para isso?

TPC – Descreva em menos de mil palavras o que sabe da entropia, da neguentropia e da vida sexual dos pêndulos.

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«A ciência tornou-se a nova religião», diz-me o C. Verdade, claro, mas num sentido secundário: é vista, seguida, ouvida como se fosse uma religião. A ciência não pode ser uma religião, pelas simples razões de que a) é amoral. «O nosso trabalho é inventar a bomba atómica. O seu é decidir se, onde e quando a usa», poderiam os cientistas do projecto Manhattan ter dito a Truman (atenção, isto não é uma lição de história. Houve demissões no projecto Manhattan por razões morais. Tão pouco tem a ver com teologia. Há moral sem religião, mas não há religião sem moral). b) Não há deuses e diabos na ciência. Que as coisas caiam a nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado ou a cinquenta é indiferente. Já para as religiões é importante saber quantas vezes comeste carne à sexta-feira, bebeste álcool ou comeste marisco. A aceleração da gravidade é o que é; desejar a mulher do próximo uma vez é diferente de a levares para a cama todos os dias e serás punido diferentemente, se acreditares que é pecado (é, se pecado for sinónimo de errado, mas isso é outra história e fica para depois).

Sem Diabo Deus não existe, não é nada, é um verbo de encher. Sem um nem outro, a ciência vive muito bem; quem não suporta a sua (deles) ausência são os proto-religiosos do nosso tempo, os que queimam livros do Tintim e atribuem a escrever tod@s em vez de todos o poder da poção mágica do Panoramix. Ou acreditam que o vírus se transmite em função do comportamento das pessoas. «Portas-te bem, mascaras-te, limpas as mãos com hidromel e o vírus não sai de ti, ele gosta de rapazinhos bem comportados e de meninas fiéis. Já se andares por aí feito homem livre matas metade daqueles que te rodeiam e metade da metade que só de olhar para ti se vê com um tubo na boca, deitado de bruços numa cama de hospital».

Gosto de Deus e do Diabo mas só nas histórias aos quadradinhos e no pouco que me ficou da Bíblia. Na vida real exasperam-me, prendem-me os braços, asfixiam-me.

Pergunto-me se há verdadeiramente uma necessidade neurológica, evolutiva, darwiniana de religião, de medos fundamentais (no sentido dos que vão aos fundamentos, como o vírus, as alterações climáticas – dantes conhecidas por arrefecimento global primeiro e por aquecimento depois –, a bomba atómica ou que o paquistanês da esquina já esteja fechado)?

Não sei.

Luís Serpa, Lisboa, 17-18/09/2021 (Texto para o Luso Magyar News)

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