Estou no restaurante Zebras do Combro, sito à calçada do Combro e penso que tenho de ir para casa. A Coluer espera-me, amarrada a um poste. Contudo, o cansaço e o ziguezagueante raciocínio levam-me pelos carreiros da vida, forma simpática de me manter aqui sentado. Para fazer qualquer coisa - seja o que for - é necessário um misto de tempo, vontade e meios. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, estes são fundamentais: procurem levar um contentor de Lisboa a Nova Iorque num barco a remos ou numa prancha de SUP e verão o resultado, por muito tempo e vontade de que disponham. «A boa ferramenta faz o bom operário», diz um provérbio judeu aplicável qualquer que seja o sentido que se dê a ferramenta.
Ou seja: ponhamos provisoriamente de lado o terceiro
termo da equação. É uma constante, não é uma variável. Tenho os meios para ir
para casa: a supramencionada Coluer, bicicleta preta, quadro clássico feminino,
sete velocidades, cesto dianteiro e gira como o dono, acabo de explicar a uns
senhores cabo-verdianos que ma gabavam há pouco. Tenho os meios, tenho tempo,
falta-me a vontade, é tudo. Tendo dois
dos três ingredientes, exploro nos tais ziguezagueantes labirintos todas as
outras coisas que tenho de fazer.
O restaurante Zebras é horrível. As únicas
coisas que o salvam são a cozinha, a simpatia do pessoal, a decoração - toda de
azulejos - a localização (perto do Largo Camões) e a dimensão (pequeno). Além
disso, nada. As favas, por exemplo: sublimes. Quem faz favas assim no Verão vai
para o céu na Primavera (alegoricamente falando, claro. Espero vivamente que
seja daqui a muitas primaveras). O igualmente sublime bagaço da casa. O preço deste
frugal jantar: qualquer calvinista o aceitaria sem ser submetido a tortura. Que
tenho de fazer, além de pedalar até casa, confortavelmente sentado numa
poltrona com duas rodas, dois pedais e um guiador? Escrever estes textos, por
exemplo. Tudo me falta, mas à vez: ora é o tempo, ora a vontade. Os meios não:
papel, caneta, telefone portátil e computador há sempre, por atacado ou a
retalho. Tenho de responder à D.: falta-me o tempo. Tenho de... Falta-me a
vontade. Enfim, não quero maçar os leitores com as minhas divagações pelos
labirintos do dever: a lista é interminável. Ora me falta isto, ora aquilo, ora
tudo ao mesmo tempo.
Retomemos o caminho,
antes de parecemos formigas ébrias com um ataque de solipsismo: não sei por
onde vou, mas sei que não vou por aí. Pergunto-me o que levaria uma formiga a
perder-se? Primeiro, como seria possível em termos físicos. Segundo, que
sobraria da psique de uma formiga se se perdesse? Nada, claro. Nem da psique
nem de mais nada. Uma formiga perdida perde-se em todos os sentidos do verbo
perder-se: nada sobra, no fim. Não é o nosso caso: perdemo-nos por estas
veredas mas encontramo-nos algures na Baixa para um último copo, espero, se
possível na ginjinha da rua das Portas de Santo Antão.
Raio do texto está a
fugir-me, como a formiga individualista. Problemas de quem leu Sterne em jovem,
o que não foi o meu caso, prova provada de que a minha infância não foi tão
feliz como a imagino. Falava simultaneamente de dois temas: o restaurante
Zebras do Combro – está arrumado: é excelente; e a mistura de componentes de
que se necessita para fazer qualquer coisa: tempo, vontade e meios. Creio
também que algures aí pelo meio falei da fatiga – a que outros chamariam
exaustão, mas esses são ou exagerados ou meninos urbanos poliamorosos. Não sou
nem uns nem outros. Exaustão tem para mim o significado que sempre teve: vazio,
cheio de coisas para fazer. Talvez não fosse má ideia rever o conceito. Se não
tiveres nada que fazer, não podes estar exausto, porque a exaustão tem a ver
como futuro e não com o passado. Não estás cansado porque fizeste, mas sim
porque não podes fazer mais nada. Só se está exausto ab ante: antes de
fazer qualquer coisa, não depois.
Bom, passemos. On
s’en fout. O que é importante, no fundo?
Resposta: importante
é o que queres e consegues fazer depois de estar exausto. Depois de estares
morto, de não saberes como te chamas, onde nasceste ou onde queres morrer. Não
há melhor critério para delinear «importante»: o que fizeste depois de morto.
(Antes disso tudo foi secundário, aceita-o de uma vez por todas.)
Por que caminhos
andarão as formigas a direito?
Estamos a falar de
carreiros labirínticos. De coisas que partem de um restaurante na
calçada do Combro e acabam na exaustão, no cansaço – nos cansaços: o físico e o
metafísico, do qual tão bem falou o Álvaro, amigo meu íntimo do coração.
« Estou cansado, é claro,
Porque, a certa
altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou
cansado, não sei:
De nada me
serviria sabê-lo,
Pois o cansaço
fica na mesma.»
Depois, vem o verso chave:
«E a luxúria
única de não ter já esperanças?»
Reconheçamos: ele estava
menos cansado do que eu. «Esperança» é uma palavra banida do meu léxico. Já
«Luxúria» não sei. A luxúria ou é destemperada ou não é. Nada espero e consigo
que isso seja diferente de «De tudo desespero.» Como naqueles quadros do Klee,
eu sei: a relação entre o nome do quadro e o que ele dá a ver é muito ténue e
reclama grande participação de quem o vê.
Bom, tentemos
ordenar isto: os bons jantares terminam num labirinto fantasmático, cansaço
metafísico, carreiros ondulantes ou simplesmente na espera pela senhora que
decidiu agraciar-nos com o seu amor e receber o nosso?
.........
Não sei.
As discussões devidas
à minha recusa em usar máscara diminuiram em quantidade e aumentaram de
alacridade. Suponho que do meu lado há cada vez menos paciência; do lado de
quem tenta implantar regras absurdas também, porque há cada vez mais pessoas a
recusar cumprir as tais regras.
Isto não é o
resultado de um estudo «científico». Talvez seja apenas a minha esperança a
parir, uma vez mais. Parece um peixe de que todas as ovas dão origem a um
descendente: a minha esperança tem uma prole infinita, pare ao menor pretexto,
emprenha por autogénese, não pára.
.........
A Covid tocou os fundamentos da nossa sociedade, minou-os (mas não de morte. Cf.
supra). Infelizmente a verdade é que isto não começou com o maldito vírus,
vai muito mais longe, muito mais atrás. O C. M. F. diz que vem do fim dos
impérios. Não o creio, mas tão pouco sei onde começou o pêndulo a oscilar no
outro sentido. Talvez na segunda guerra mundial, quando a ciência eclodiu em
Nagasaki e em Hiroxima? Talvez na primeira, com o gás mostarda e a aviação?
Será que vai ser precisa
uma nova guerra para pôr o pêndulo a mudar de direcção?
Pergunta: o pêndulo
pára no seu ponto mais baixo. O que lhe garante que ele manterá o seu
movimento? De onde vem a energia necessária para isso?
TPC – Descreva em
menos de mil palavras o que sabe da entropia, da neguentropia e da vida sexual
dos pêndulos.
.........
«A ciência tornou-se a nova religião», diz-me o C. Verdade, claro, mas num
sentido secundário: é vista, seguida, ouvida como se fosse uma religião. A
ciência não pode ser uma religião, pelas simples razões de que a) é amoral. «O
nosso trabalho é inventar a bomba atómica. O seu é decidir se, onde e quando a
usa», poderiam os cientistas do projecto Manhattan ter dito a Truman (atenção,
isto não é uma lição de história. Houve demissões no projecto Manhattan por
razões morais. Tão pouco tem a ver com teologia. Há moral sem religião, mas não
há religião sem moral). b) Não há deuses e diabos na ciência. Que as coisas
caiam a nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado ou a cinquenta é indiferente.
Já para as religiões é importante saber quantas vezes comeste carne à
sexta-feira, bebeste álcool ou comeste marisco. A aceleração da gravidade é o
que é; desejar a mulher do próximo uma vez é diferente de a levares para a cama
todos os dias e serás punido diferentemente, se acreditares que é pecado (é, se
pecado for sinónimo de errado, mas isso é outra história e fica para depois).
Sem Diabo Deus não
existe, não é nada, é um verbo de encher. Sem um nem outro, a ciência vive
muito bem; quem não suporta a sua (deles) ausência são os proto-religiosos do
nosso tempo, os que queimam livros do Tintim e atribuem a escrever tod@s em vez
de todos o poder da poção mágica do Panoramix. Ou acreditam que o vírus se
transmite em função do comportamento das pessoas. «Portas-te bem, mascaras-te,
limpas as mãos com hidromel e o vírus não sai de ti, ele gosta de rapazinhos
bem comportados e de meninas fiéis. Já se andares por aí feito homem livre
matas metade daqueles que te rodeiam e metade da metade que só de olhar para ti
se vê com um tubo na boca, deitado de bruços numa cama de hospital».
Gosto de Deus e do
Diabo mas só nas histórias aos quadradinhos e no pouco que me ficou da Bíblia.
Na vida real exasperam-me, prendem-me os braços, asfixiam-me.
Pergunto-me se há
verdadeiramente uma necessidade neurológica, evolutiva, darwiniana de religião,
de medos fundamentais (no sentido dos que vão aos fundamentos, como o vírus, as
alterações climáticas – dantes conhecidas por arrefecimento global primeiro e por
aquecimento depois –, a bomba atómica ou que o paquistanês da esquina já esteja
fechado)?
Não sei.
Luís Serpa, Lisboa, 17-18/09/2021 (Texto para o Luso Magyar News)
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