Este texto começou por ser um pedido de desculpa ao Arnaldo Rivotti e aos leitores do Luso Magiar News pela minha prolongada e não anunciada ausência. Como sempre, evoluiu, tornou-se um rio com afluentes, desaguou noutra coisa. Mas a raiz manteve-se: é um pedido de desculpa.
Temos andado relapsos, a escrita e eu. Cada vez admiro
mais aqueles escritores que escrevem quaisquer que sejam as circunstâncias,
estejam a morrer de fome, de frio, atacados pela doença ou pelas infelicidades
pessoais. Eu preciso de muito menos do que isso para ficar completamente
paralisado, sinapses congeladas, neurónios a ferros.
Não é que as ideias tenham deixado de afluir, que a
vontade de escrever me tenha abandonado. Não, nada disso. É muito mais simples:
a comunicação entre o meu cérebro – ou aquilo que em mim faz de cérebro – e os
meus dedos está interrompida. A ponte que os uniu ruiu, caiu, desmantelou-se,
foi-se a martelo.
E tanto que há sobre o que falar: acabar a história da
Casa, que me povoa muito mais do que eu a povoo; as eleições, pelas quais
finalmente me interesso – estou num dilema e não sou homem de dilemas, gosto de
caminhos direitos (sim, apesar de todas as bifurcações da minha vida); o
maldito vírus, que não há maneira de deixar a cabeça de quem nos governa; o
frio, o café onde venho escrever, os livros que tenho ainda por arrumar, a
minha bicicleta... Enfim, exagero. Estou a esticar a corda para ver se no fim o
balde traz alguma coisa de jeito. Não traz. Para além da Casa nada me
entusiasma e esta não chega para pôr os dedos a funcionar coisa que se veja.
Lembro-me de uma passagem do Zen e da Arte da
Manutenção de Motocicletas, livro de vida, livro semente, basilar, no qual a
personagem, professor universitário, sugere a um aluno que não sabe o que há-de
escrever que descreva a parede, tijolo a tijolo. Devia seguir-lhe o conselho,
talvez: a parede tem centenas de tijolos à vista, irregulares, unidos por
grossas camadas de cimento. Contudo, este tijolo tem um nome: tijolo-cego, ou
burro, ou coisa que o valha e chegado aqui tenho de parar. Isto não é uma
autobiografia.
Armando voltou a chamar-se António, nome com que
nasceu, por imposição de Vanda (?), a senhora que o acolhia quotidianamente na
tasca da aldeia para onde se mudou para morrer. Fiz-lhe a vontade e morri-o. A
história passou para a tal senhora, que começou logo por me fazer exigências:
não gosta do nome de Armando, gosta mais de António que é, diz ela, «nome de
santo e de vagabundo». António é um e outro, verdade seja dita: passou a vida a
tentar ser um gajo decente e aparentemente conseguiu-o. Claro que entre
«decente» e «santo» há uma longa estrada, mas nada que a literatura não consiga
percorrer. Faz o que quer, a literatura, leva-nos por caminhos de cabras, por
carreiros, atalhos, auto-estradas, sobe escadas e desce a abismos. António não
é santo nenhum, excepto aos olhos de Vanda (?). Talvez esta confunda paciência
e santidade; ou sabedoria e santidade; ou, mais prosaica e provavelmente,
desinteresse e santidade. O conto já tem destinatária – a alegria. Devo ser o
triste menos triste do mundo, de tal maneira a alegria me atrai.
Entretanto o país arrasta-se, falido e enregelado,
«infectado» e desesperado, para eleições cuja única dúvida é: o Costa vai-se
mesmo embora? Jura! De vez? Promete! Não sei o que virá a seguir. Os «insiders»
dizem que Costa vai ser substituído pela Mendes, que não sei o que vale. Pouco,
provavelmente. Parece que também oficia na TV, o grande ascensor político deste
país, função esta que rivaliza – e quantas vezes acumula – com a Câmara
Municipal de Lisboa. Como não vejo televisão e de Lisboa só vejo o lixo e a
sujidade nas ruas não estou muito a par. Vou votar dia 30 indeciso entre o voto
contra a Covid ou o voto no longo prazo. A IL, embrenhada em politiquices?
Pois. Não se pode estar no caldeirão e fora dele e a verdade é que do caldo é o
único ingrediente que se aproveita. Mas é preciso sinalizar ao governo que o
vírus não é desculpa para tudo, não é? Não sei. Isto não é fórmula: não sei
mesmo e acho que não saberei até ter o papel à frente e a caneta na mão. Vou
votar ao fim do dia, disso estou mais ou menos seguro: o governo quer reservar
esse período aos «positivos» e podem acusar-me de tudo menos de ser negativo. [Nota:
afinal já não quer. É só «recomendação». Ainda bem.]
Entretanto os «projectos» lá vão andando, a pé coxinho
como tudo em Portugal. Pelo menos para quem não é da família. Moura, Mértola, a
tradução do Avenida (essa não tem nada a ver com a família, verdade seja dita.
Tem a ver com a chuva. Está a ficar fantástica, muito para cima do que eu
esperava). «Projectos» leva aspas, claro: é palavra que já não posso ver à
frente. Faço minha a expressão de absoluto desprezo e descrédito da advogada a
quem o mencionei, há uns largos anos. Nunca me esquecerei do tom com que ela
repetiu «Projecto? Projecto?» como se fosse acha ardente tirada da lareira, ou máscara
suja apanhada na rua. O projecto «casa» (habitação, não o texto) também vai
avançando no habitual pára-arranca. Como a tradução, depende da chuva e de
momento esta anda escassa. Tudo comigo nasce a ferros, talvez para me lembrar
de que também eu saí assim, já lá vão sessenta e quatro anos. O problema é que
daquela vez foi um médico e agora sou eu quem manipula o instrumento e cada vez
necessito de mais força, mais energia, mais vida, mais tudo e cada vez mais
tudo isso me foge. Estou todo podre por dentro, essa é que é essa. E se até há
pouco tempo a podridão era só da cabeça para baixo, agora está em todo o lado.
Alzheimer da alma. Vá lá que ao menos tenho esta vista linda, estas cores às
quais o fim da tarde dá a vida que me tira a mim. Vai tirando, pouco a pouco. Não
sei é se é a luz. Talvez seja o tempo. E talvez não seja só a mim.
A ver vamos, como diz o ceguinho (à mulher, que é
surda).
E depois, que dizer deste clima de suspeita, de
destruição do tecido social, de ataque à liberdade, fraudulento, absurdo,
absolutamente deletério no qual mergulhámos – ou antes, nos mergulharam – há
dois anos e do qual não se vê o fim? Ver vê-se, mas tão longe. A cabeça da maioria
das pessoas continua cheia de merda, não há outro termo; vazia de razão.
Sinto-me como o único gajo são do manicómio, mesmo sabendo que somos muitos – e
somos cada vez mais. Talvez daqui venha alguma esperança, talvez daqui venha o
rio que vai alagar o resto todo. Não seria senão justiça, já que foi ele quem
inundou isto tudo com o cheiro pútrido da loucura. Está na hora de recolher ao
esgoto de onde nunca devia ter saído. A facilidade com que as pessoas trocaram
a liberdade pela segurança é assustadora (e ainda mais se nos lembrarmos de que
«segurança» é um exagero grosseiro). A facilidade com que se deixam enganar
também: estamos muito mais à mercê do que sempre pensei.
É isto: tempos sombrios por dentro e por fora, como se
persianas filtrassem a luz que chega, já de si pouca. Resta-me um consolo: as
persianas abrir-se-ão e a claridade aumentará. Para alguma coisa serve ser
optimista, não? E ter uma flor na lapela da vida.
Lisboa, 22-01-2022
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.