Quatro horas de marcha em Genebra: casa - Rive (comprar café na Carasso) - rue du Rhône - Corraterie (ver as montras da Brachard e comprar tinta para as canetas) - place Neuve (fotografar os jogadores de xadrwz dos Bastions) - rue de Carouge (beber um copo na Livresse, que deixou de ser livraria há dois anos) - Bains des Pâquis (encontrar-me com a filha e com o neto) - passeio até onde foi possível andar (há uma conferência da OMC e para aquelas bandas está tudo vedado).
Regresso a casa de autocarro, exausto. Nunca gostei muito de viver na Suíça - La Chaux-de-Fonds, Zurique e Genebra, por esta ordem, com um ano em Aveiro e uma viagem a Moçambique entre la Tchaux e Zurique, um ano no Burundi, quase seis meses no então Zaire, três verões nos Açores - e como ao mesmo tempo pensava que as vantagens superavam as desvantagens andava numa permanente dissonância cognitiva: como não gostar de viver num país ao qual sempre gostei tanto de regressar?
A explicação começa a delinear-se agora (sou um rapazinho lento, nada a fazer). Desde quando aqui cheguei, em finais de setenta e nove e até pouco antes de voltar a Moçambique em noventa e sete, não era dono do meu tempo. Isto é: o meu tempo era organizado pelo governo. Quando podia fazer compras - em oitenta e três havia duas mercearias abertas ao domingo para todo o cantão de Genebra - quando podia divertir-me - as horas de fecho dos bares e cafés eram apropriadas para crianças e ferozmente aplicadas pela polícia - as horas a que podia fazer barulho em casa (um problema que, verdade seja dita, nunca tive. Questão de sorte). O governo (na verdade, os governos, federal e cantonal) geriam o tempo dos cidadãos. Porque estes queriam ou pelos menos permitiam, é certo. Mas não por isso deixa de ser insuportável para quem não queria.
Nos anos noventa as coisas começaram a mudar. As pressões para liberalizar e as naturais reacções para manter o status quo tornaram-se demasiado visíveis. Os referendos para permitir aberturas mais longas e aos domingos eram sistematicamente ganhos por quem não queria mudanças (o argumento sendo a defesa dos trabalhadores. Quando me ouvirem apodar a esquerda de reaccionária não se espantem. O exemplo está longe de ser único). A resposta do governo federal foi simples: aproveitou um buraco na lei segundo o qual estações de caminho-de-ferro e aeroportos são territórios federais e permitiu a abertura de supermercados nesses lugares. Depois, o cantão de Genebra começou a permitir a abertura alargada de pequenos negócios - os patrões não precisam de defesa, toda a gente sabe.
O efeito foi o mesmo que teve em França a chegada do "árabe da esquina" nos anos oitenta: semelhante a descalçar um sapato demasiado apertado. Agora posso ir ao supermercado ao domingo - na gare dos comboios e no aeroporto - e posso comprar mercearias à meia-noite.
Ao mesmo tempo fui envelhecendo, claro. Tenho cada vez menos necessidade de comprar uma lata de ervilhas à meia-noite (ervilhas deveria talvez levar aspas) e não me importo de ter de ir à estação ou ao aeroporto se precisar de um supermercado ao domingo. Com a idade perdemos em paciência o que ganhamos em tolerância.
[Felizmente na Suíça os políticos não têm poder nenhum, o que limita bastante os danos por eles provocados. E ainda há quem seja contra a democracia. Não quer dizer que na Suíça não haja resultados «errados» de votações. Há, claro. A democracia consiste exactamente em dar ao povo a possibilidade de se «enganar». Quem sabe tudo são os ditadores. Mas isso fica para depois.]
Estávamos nos telejornais: pandemia, alterações climáticas, etc. A actualidade é tão maçadora como a modernidade na qual se inscreve. Talvez seja isso que distingue a nossa modernidade das anteriores, que tiveram pelo menos o mérito de ser excitantes.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.