1.7.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2022

Venho à Bodega Belver beber um palo. Garrot, claro. É o mais suave deles todos. Não sei o nome do dono. Nunca (salvo uma vez) o vi sequer sorrir. A Bodega Belver é um dos locais que resiste tenazmente ao cilindro igualador e esmagador da modernidade. Na porta tinha um aviso: "Não há tapas". Agora tiraram-no, mas suponho que continua a não haver. Só fazem pa amb oli (pronuncia-se pamboli, uma espécie de semi-sanduíche de que não sou grande adepto). O Garrot sabe-me bem, o sítio está praticamente vazio, mas vou-me embora rapidamente: tanto o dono como o empregado estão de máscara. Nenhum deles sorri, é verdade, são maiorquinos até à décima geração antes deles, mas já não aguento a estupidez.  

Refiro-me a esta estupidez, note-se. Deve haver talhões ou divisões no cérebro das pessoas, uma espécie de tabuleiro de xadrez mas mais irregular, com quadrados inteligentes e quadrados estúpidos. A Covid não é um teste de inteligência «geral», por assim dizer. Aquilo escolhe uns talhões na massa cinzenta, engole sinapses, neurónios, neuro-transmissores, receptores e tudo aquilo que sustenta o raciocínio e pronto. Como não há incentivos para não expor esta forma particular de estupidez, ela anda aí pelas ruas, sem vergonha. 

Questão de tempo, eu sei. Contudo, agora com o número de «casos» e (sem aspas) de hospitalizações a aumentar vertiginosa (mas não «exponencialmente», palavra que estranhamente desapareceu do léxico mediático), duvido muito que os quadrados com máscara cedam terreno aos outros.

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Os casos e as hospitalizações aumentam e o governo balear (presidido por uma senhora do clube Sanchéz & Costa) reage louvavelmente. É estranho e contraditório, eu sei, mas é assim. Em primeiro lugar, a senhora recusa novas «medidas», com o argumento de que «a epidemia está controlada e as pessoas têm direito à normalidade"; em segundo, aconselha - com uma timidez digna de nota - «quem só teve duas doses de vacina a tomar a terceira». Como se ela própria não acreditasse muito naquilo.

Claro que para chegar aqui provocou dois anos de miséria. Como diz o meu cliente (que afinal só verei amanhã, porque perdeu o avião em Barcelona e devem estar cansados, ele e a mulher): restons positifs.

Se até uma socialista (de quem as más línguas não dizem coisas muito boas, ao contrário do que é habitual) reconhece, mais coisa menos coisa, que se enganou, há lugar para dar uma cadeira à esperança. Confortável, não vá o diabo tecê-las.

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Esta cidade enche-me de uma emoção que por vezes sente necessidade de extravasar, como se a solidão fosse um génio numa lâmpada que Palma esfregou.

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Música no Divino, onde desaguei - ou a burra me descarregou, farta de indecisões, vá lá saber-se. Blues com um desses orgãos eléctricos e um sax. Pouco a oiço, verdade seja dita. Concentro-me na escrita e no vinho, agora branco - acabei o jantar com uns boquerones fritos que o Roberto faz maravilhosamente, deve fritá-los com um cronómetro numa mão e um termómetro na outra. Aprecio muito esta forma de comer: um pouco disto, outro daquilo, «um bom marinheiro toca em todos os portos», dizia o meu Pai com um duplo sentido que quase toda a gente percebia. A minha Mãe estava incluída nesse quase, mas já estava habituada. Se há coisa que aprendi com os meus pais - não há coisa, há milhares de coisas - ... Não interessa.

Passemos ao presente: a música é excelente, o jantar também (arancini, carpaccio de bresaola, boquerones fritos), os vinhos não ficam atrás de nada disto. Esta mania que a memória tem de que é a água tónica no gin do presente deve acabar.

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