8.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 08-12-2022

Só me apetece não me apetecer nada e tenho sorte: não me apetece nada. Na parte do dia em que ainda me apetecia qualquer coisa também tive sorte: apetecia-me um bom almoço e saiu-me na rifa um excelente, no Sabores de Goa. Agora não me apetece nada e o que tenho é pouco, muito pouco, quase nada: uma taça de vinho (ainda não provei) numa cervejaria do Camões, aposto que não é grande coisa, quase nada. Apesar de gostar desta cervejaria, note-se  éum daqueles clássicos que agora ascenderam à categoria de resistentes. Mas não é o que me apeteceria, se me apetecesse ter vontade de qualquer coisa: o Vertigo, o Fábulas, lugares assim, fechados pela "pandemia" (aspas para) ou pelos "turistas" ou, mais prosaicamente, por causa desta estúpida propensão que as cidades têm para mudar, como se fossem pessoas ou obra de pessoas.

De modo estou assim, sem apetências e sem destino, sem vontades e sem eus a chatear-me. O vinho é medíocre mas não tão mau como esperava e o eu que agora carrego é transparente, mal se nota na paisagem: a luz verde de uma farmácia à direita, o encarnado do semáforo à esquerda, a cidade vem direitinha contra mim e eu aqui sentado não lhe ligo nenhuma.

Mentira: de vez em quando levanto os olhos para a fauna da cervejaria, penso que devia ter trazido a máquina fotográfica, que não devia ter perdido as canetas, que devia ter o bloco-notas comigo e assim só teria de pedir uma esferográfica ao empregado (um senhor baixinho e com um enorme sentido de humor) em vez de escrever no telefone, penso que escrever no telefone tem algumas vantagens, penso na cidade na qual vagueio e da qual faço parte como um quisto (maligno ou benigno? Não sei) faz parte de um corpo, bebo o vinho a um ritmo vertiginosamente lento, troco uma chalaça com o empregado baixinho e piadético, deixo-me ir no lento caudal de uma tarde involuntária.

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