A «quase-necessidade imperiosa» de uma piña colada de ontem transmutou-se hoje na quase-necessidade imperiosa de sol e água salgada na pele. Fui cedo para Estellencs mas não tive sorte: «as mesas estão todas reservadas e não se pode ocupar uma mesa cinco horas e blábláblá», tendo este bláblá sido emitido num tom a raiar o desagradável. A raiar, só: estavam ainda a pôr as mesas na esplanada, que é minúscula. Pouco importa: comecei por ir a Port des Canonges, que não me convenceu por falta de sítio para me sentar à beira-mar. Acabei em Port de Valldemossa, no velho es Port, do qual a simpatia do pessoal, a hospitalidade e a qualidade da comida compensam largamente os quilómetros a mais que tem de se fazer. De modo lá dei sol e azul salgado à pele e aos miolos, que lhe estão intimamente ligados (cf. Neurociencia del cuerpo, um livro que mudou a minha maneira de olhar para o mundo. Isto é, para mim. Para tudo) e filetes de peixe-galo e vinho branco e café e hierbas secas e tudo aquilo de que o meu corpo precisa para se pacificar e esquecer por momentos o P., que parece cada vez mais fazer parte dos meus circuitos neuronais.
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Fui cedo, ainda o Sol rasava o cume das montanhas. A luz oblíqua e densa da manhã (tal como a da tarde, de resto) acrescenta dimensões àquilo que de si é tridimensional. Parece que a paisagem adquire uma quarta dimensão, ou quinta.
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Querido diário: há muito que andas a desafiar-me para te falar dos carros do meu amigo Egidio, a minha empresa favorita de aluguer de automóveis (a seguir vem a Olivauto, em Lisboa. Aproveito estar em modo publicidade grátis). Chamar empresa ao Egidio está algures entre o exagero e o insulto (para as empresas, não para o senhor, que é muito mais do que uma empresa). O seu modelo de negócio é simples: compra os carros que as empresas «normais» já não querem e aluga-os a um preço ligeiramente reduzido. Duas notas: Um - digo «ligeiramente» sem saber se é verdade. Nunca me passou sequer pela cabeça alugar carros noutro sítio, quando em Palma. Na «peninsula» aluguei uma vez e foi uma catástrofe. Dois - Por vezes acontece-me pensar que ele também compra carros no ferro-velho, mas isso é só quando estou de mau-humor, o que é felizmente raro.
Mas antes de te falar dos carros do Egidio - já falei - devia ter-te contado uma grande novidade: parece que resolvi o problema dos cafés para escrever / trabalhar / flanar pelas redes aos domingos à tarde. O café Al Punt tem tudo o que é preciso: mesas com tomadas, ar condicionado, não muito longe do porto. A mesa é um bocadinho baixa demais, mas penso que uma vez por semana poderei viver com isso.
Volto então aos carros do Egidio: fazem-me lembrar os carros do então Zaire (se bem lá estes passassem por automóveis saídos do stand). São automóveis contra-indicados para quem goste de uma condução confortável, digamos. Ora as coisas não funcionam, ora funcionam e não param de funcionar, ora o carro vibra quando chega aos cento e dez ou não chega sequer aos cem, ora têm o alarme do óleo aos gritos ora... Não, isto não é ora. É sempre: o Egidio está sozinho, de maneira os carros saem da sua «garagem» (um terreno ao ar livre que acolhe duas ou três empresas, não sei de quê) com a gasolina que o cliente anterior lá deixou. A combinação sendo «deixas o depósito como o encontraste». Nem sempre é possível. Já me aconteceu sair dali com um carro a perguntar-me se chegaria à bomba de gasolina que fica a quinhentos metros. Aquela luzinha vermelha que acende quando o carro precisa de combustível já não era vermelha. Era infravermelha. Ultravioleta. Não era luz sequer, era um grito, um pedido de socorro, um náufrago na água agitar o colete de salvação: «dá-me de beber!» Claro que ninguém com um mínimo de empatia pelo próximo (não me refiro apenas ao próximo cliente, mas ao próximo no sentido genérico do termo, outrèm) deixa um carro assim. Como me acontecia por vezes deixar o carro com mais gasolina do que a que tinha quando saíra com ele e nunca me aconteceu sair com um tanque nem que fosse a meio, um dia perguntei-lhe o que fazia ele com a gasolina. Vendia-a? «Não», respondeu. «O que entra é o que sai.»
Os carros têm as avarias mais diversas (já me calhou basicamente de tudo, o que é uma boa escola. Mas nunca fiquei parado na estrada) e o Egidio nem sempre se apercebe porque nem todos os clientes lho dizem (eu digo, quando me lembro). As viaturas têm um preço fixo qualquer que seja o seu tamanho, ano ou estado - com excepção, por vezes, dos que estão sujos («este não está muito limpo») que têm uma redução de cinco euros ao dia. Pago um euro para os aspirar, pelo que fico a ganhar. Não há seguros: ou estão incluídos no preço, se os riscos e mossas são pequenos; se são grandes paga-se um ligeiro suplemento na entrega do carro. Uma vez parti-lhe o vidro de um pisca-pisca traseiro. Disse-me que ia comprar um ao ferro-velho e me cobraria o que lhe custasse (no que acredito). Na vez seguinte calhou-me o mesmo carro. Tinha um pouco de fita isoladora encarnada no sítio do buraco e até hoje não apareceu conta nenhuma. Podem dizer o que quiserem do Egidio. Para mim é um herói. (Ele denomina-se «louco», mas não concordo. É um homem bom e sério.)
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Pronto, querido diário. Já tens a tua históra sobre os carros do Egidio. Agora vou comprar um desodorizante, se não te importas. Pouco mais há a dizer, de qualquer forma. O dia passou sozinho, sem a minha ajuda. Enfim, quase. Mas não te quero aborrecer hoje com as chatices que me esperam amanhã. Seria uma falta de educação enorme, não é? É.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.