9.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-10-2023

Pode finalmente comer-se na Casa Julio. As filas de alemães barrigudos e alemás feias acabaram. A jovem loira que aqui trabalha desde que desembarcou da arca de Noé (reitero e sublinho a juventude da senhora) diz-me - quando lhe menciono esta sorte - que agora posso reservar mesa ao meio dia, quando houver estas filas todas (as de Verão). Detestáveis, acrescento mentalmente, estas filas de gente abominável que vem comer ao «mini-restaurante» (verbatim) porque um palerma qualquer num guia idiota lhes recomendou a  «experiência», a «não perder». É evidente, ou devia ser para todos, que as minhas razões para frequentar esta casa há dez anos são muito mais válidas do que as deles. Aliás: são as únicas válidas. A saber: venho aqui porque quero comer bem por pouco dinheiro; venho aqui porque quero comer maiorquino no meio de maiorquinos, informalmente e num sítio aonde sou reconhecido. Porque quero estar num restaurante aonde as empregadas mandam uma piada e ouvem outras em troca, apesar de andarem sempre a correr. Que vale a «experiência» face a isto tudo? Que vivemos, quando turistamos? Que sabemos das casas Julio deste mundo quando para lá somos enviados por um guia du Routard, ou Baedeker, ou o raio que o parta?

A questão é muito mais complexa do que à primeira vista parece. Leva-me imediatamente a outra, completamente desescalada (no sentido de fora de escala, desproporcionada): deveria o Ocidente acabar com a ajuda «ao desenvolvimento»? Face aos resultados: Sim, claro. Mas há ou não pessoas físicas, concretas, nomeáveis, tangíveis que beneficiam dessa ajuda? Há. Serias capaz de lhes dizer que vais deixar de lhes dar comida porque o que a elas chega é uma pequena percentagem do que lhes foi enviado? Serias capaz de proibir as filas de turistas palermas (passe a redundância) que esperam à porta do Julio porque a experiência deles não passa de um ersatz? Quem és tu para decidir assim da vontade - ou do destino - das pessoas? Felizmente este decidir pode levar aspas. Não decido nada. Limito-me a pensar e a escrever, duas actividades às quais reconhecidamente não devia ter acesso mas enfim, tenho.

Ninguém. Não sou ninguém. Ou seja: volto para bordo, não sem antes comprar um maço de cigarros na Cantina (mau sinal mas pretexto para um rum Cacique, o que atenua) e aqui chegado oiço música sacra russa, porque não há nem nunca houve ninguém como eles para falar com Deus. (E com o Diabo, acrescento agora que penso nisso. Andam sempre juntos.)

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Questão subsidiária: os homens que pedem ao patrão um aumento de salário porque não ganham o suficiente para fazer face às despesas são os mesmos que tentam seduzir uma mulher porque estão sozinhos? (É para um amigo, claro.) 

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E assim se esvai um dia do qual a única coisa que extraí foi ter o P. a brilhar (e ainda não acabou). O Janosh limpa-me esta merda melhor do que muitas mulheres e Deus sabe se estou precisado de um exército delas (para as limpezas). Amanhã vem o Ricardo (se vier. Esse é daqueles que só conta quando lhe tenho os olhos em cima). Lembram-se de quando escolhíamos as equipes pondo cuidadosamente um pé à frente do outro? Pois é mais ou menos assim.

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Pronto. Tal como os rios desaguam no mar eu desaguo nas Vésperas de Rachmaninoff, nas hierbas secas e no gozo com as palavras. Falta uma coisa, eu sei. Mas não se pode ter tudo. O que de certa forma é injusto: se pode ter-se nada, porque não ter tudo? A simetria deve ser seriamente reavaliada.

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