Escrevo-te com a caneta de madeira de oliveira que comprei na Rambla, já não sei quando. É a maior, a mais barata e uma das que mais gosto, de entre todas as que tenho. O aparo escorrega quase sozinho pelo papel Clairefontaine, a caneta é grande e pesada - curiosa, esta minha atracção pelos objectos grandes e pesados, não é? Aplicava-se aos sextantes e aplica-se ainda às mulheres e a certas partes da sua anatomia, não aqui nomeadas por pudor -; só tem um defeito: a ponteira é demasiado fina. Por isso mudo para a Kaweco, essa sim, de longe a minha favorita. Parece uma caneta de guerra e apesar de parecer pequena aumenta muito quando se lhe põe a tampa por cima. É a que tem o aparo maior, desliza bem e faz-me pensar em ti mais do que qualquer das outras. A de madeira é demasiado rústica e as Parker demasiado urbanas, inapropriadas para textos hesitantes, rustres, desajeitados, quase orais como os meus.
A Kaweco desliza isenta de atrito, generosa com a tinta, como eu gostaria que a minha vida fosse: fluida. (Não sei se conseguiria viver uma vida assim, mas isso são contas de outra vida.)
Também tu és uma mulher de guerra, não és? És. E de geometria variável, apesar de essa geometria não ser visível a olho nu.
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Não sei que nome dar a esta mistura de Lisboa, jazz (o puto do piano é bom que se farta), a senhora loira com um lenço encarnado a atar-lhe os cabelos, cerveja e rum. Não sei. A mulher está de costas mas adivinho-a parecida contigo e talvez isso chegue para me fazer feliz. Penso: "poderia ter namorado com ela", mas não me levanto para confirmar essa hipótese. Basta-me intuí-la parecida contigo e saber que sim, de certa forma nós namorámos, apesar de "namoro" ser um bocadinho exagerado, não ser absolutamente correcto, estar à côté de la plaque.
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Uma sociedade moderna, decente, vivável é uma colecção de "uns" e não um gigantesco colectivo de "uns" fundidos uns nos outros como os braços do polvo.
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O senhor à minha frente, neste café de bairro no qual me sentei após uma longa busca concentra-se na sequência de crimes da CMTV.
Os outros cafés são todos "speciality coffee", "fusion food", "gourmet" mai-la a whore que os pariu e os preços que vão avec. Este café é genuinamente português, tal como o senhor velhote que se interessa pela análise cuidadosa e sociológica da televisão.
Vejo-lhe as costas, o chapéu amarrotado, o casaco puído, a cabeça a apontar para o ecrã e penso que temos solidões diferentes e provavelmente inconciliáveis, apesar de o fornecedor de café e mesas ser o mesmo.
Nos sítios pelos quais passei até chegar a este não havia pessoas sozinhas.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.