28.1.24

Claramente

As coisas têm de ser ditas e ditas com clareza. Onde não há clareza não há coisas. Há palavras, quando muito e palavras não são coisas. São sons. 

Por exemplo: a música de Evanthia Reboutsika, de Eleni Karaindrou, de Angélique Ionatos, de Nena Venetsanou é maravilhosa. Digam o que quiserem, eu não me importo. Em Portugal temos uma assim, uma senhora que cantava com os Madredeus. Teresa, se bem me lembro. Nogueira? (Salgueiro, estúpido.) Assim que de repente me lembro é a única. Ah, e há também o Vasco Abranches, que compõe música como deve ser.  Isto é, música que não seja jazz ou medieval, renascentista, barroca ou até pós-romântica, porque essa é sempre como deve ser. Até Britten que morreu ontem à tarde tem boa música. Quem não gosta de Mahler levante o braço. Ou de Rachmaninov. São sons? Não. É clareza feita música. Quem não gosta de Ahmad Jamal ou de Mingus sai da sala. De Hildegarde von Bingen. Arvo Pärt. Chavela Vargas.

Podia passar a noite toda a recitar nomes, mas o objecto deste texto não é a música. É a clareza. A função das palavras. Dizer A e significar A. Dizer «Amo-te» e deixar bem claro que «amo-te» significa «quero amar-te. Quando te conhecer, daqui a cinco ou dez ou quinze anos, amar-te-ei». Dizer: «Não sei» e significar «Não sei». «Não sei quanto tempo levarei a conhecer-te porque o amor não é uma pomba que nos cai do céu, é uma parede que se constrói todos os dias, tijolo a tijolo, talocha a talocha.» «Não sei quem sou, porque contigo serei diferente. Se não for, de nada não serve estar contigo: o amor serve para nos mudar. Se for para ficar na mesma, mais vale mantermo-nos cada um no nosso canto.»

Por exemplo: «não sei» significa «não sei». Ou seja: um mundo. A quantidade de coisas que não sei é infinitamente superior às que sei. Este copo de café que agora bebo, esta música que oiço (Eleni Karaindrou, "Beatriz"), este rum (HSE ambré), este salão aonde escrevo (S/Y S. D.)... Que sei eu de tudo isto, sem o cimento aglutinador do amor? Sem o amor nada sabemos, com ele tão pouco mas pelo menos ficamos mais perto, é para isso que serve o amor, para ficarmos mais longe do que não sabemos, mais perto de saber qualquer coisa. Se eu ouvir Evanthia Reboutsika contigo oiço a mesma que oiço sem ti? Não sei.

Não sei. Conheço caminhos mas nem todos os caminhos são iguais. Interessam-me os caminhos que não conheço? Nem sempre. Às vezes gosto da segurança de um porto cujas ruas, cafés e bares já percorri. Gosto do sorriso que umas flores te dão. Acredito na capacidade unificadora de um olhar. Acredito na capacidade unificadora das palavras claras.  Acredito nos gestos simples, na capacidade apaziguadora de uma carícia, no desafio de uma dúvida. Acredito em tudo aquilo que quero acreditar porque não saberia acreditar no que os outros acreditam, mesmo que quisesse. 

Por isso acredito no amor: esta parede que fui construindo a várias mãos fez de mim aquilo que sou hoje, aquilo que amanhã serei contigo. Depois de amanhã não sei. Depende da qualidade dos tijolos e do cimento, do jeito dos pedreiros - nós. Há poucas coisas na vida que não sejam uma incógnita e «nós» é a maior delas todas. Há que dizê-lo claramente.

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