16.2.24

Um comboio para lado nenhum

Nada disto aconteceu, nada disto se passou como digo que aconteceu. Toumani Diabaté não está a tocar as Mandé Variations, um dos discos mais belos que a humanidade produziu e que se lixe a world music, com f grande se faz favor; a ventoinha do meu camarote não foi apagada agora mesmo e não estou tapado com o lençol; a médica não me disse nada àcerca de cuidados enfermeiros; não me encharquei em rum - nem sequer acabei o copo; nada disto aconteceu num dos planetas em que habito. Destapei-me. Parei a ventoinha. Não bebi o rum todo até ao fim. Nada disto é verdade, nem isto nem o seu contrário. Acabo de beber quase um decilitro de água. Disse à médica que sim, tinha bebido quase dois litros de água por dia, a seguir à operação. Também lhe disse que nem numa semana bebi essa água toda, mas ela não ouviu. Tenho de treinar o meu talento de ventríloquo. Tenho de beber mais água. Tenho de ouvir o Diabaté mais vezes. A vida passa por mim como aquele comboio das feiras, que apanhamos mas nos quais não acreditamos - de qualquer forma não nos levam a lado nenhum. Não sei sequer se estou sentado ao lado do condutor se no meu lugar favorito, ao fundo da última carruagem, a dos retardatários, a dos que apanharam o comboio com mais dúvidas do que certezas. "Nesta carruagem não há lugar para certezas", poderia um cartaz dizer. "Só dúvidas". Penso na quantidade de músicos que poderia incluir na viagem mas são muitos. E excluir, claro. É muito tarde para fazer listas, destapei-me, parei a ventoinha, Diabaté faz-me desviar do que escrevo para o ouvir, sei que vou ter de beber mais água porque estou com sede e sei que vou acabar o rum. Quer se queira quer não o universo é um gato que cai sempre de pé, venha de onde vier.

Amanhã terei de ver se consigo resolver o problema do motor. Amanhã terei de ver se consigo resolver o problema do comboio da feira. Tem uma carruagem que diz "Só para boçais" mas ninguém se reconhece como boçal e a carruagem vai vazia. Talvez se soubessem escrever uma frase completa, com sujeito, predicado e complemento directo. Talvez. 

Talvez devesse haver uma carruagem para quem desliga a ventoinha do camarote porque não sabe se prefere ter frio ou ter calor, se prefere tapar-se com o lençol ou destapar-se, se prefere caras ou coroas. Talvez.

Ou uma carruagem para quem gosta de beber água, dois litros por dia "para limpar os circuitos" (aspas porque me cito). A mesma pessoa poderá ocupar várias carruagens simultaneamente? Do género "não tenho certezas, não bebo água, gosto de Toumani Diabaté, bebo rum e abro excepções a todas estas afirmações". Todas elas são verdade e o seu oposto é igualmente verdade. Cada uma delas mereceria uma carruagem, se a justiça funcionasse. (Não sei de que justiça se trata aqui.)

Não sei e sei que não sei, o que demonstra que sei. O comboio não leva a lado nenhum senão ao lado de onde saiu, chamado precisamente "nenhum".

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