18.4.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 18-04-2024

Entro devagar - martiniquesamente? - no modo «mar». Já estou com um pé lá outro acolá. Amanhã - sexta-feira e eu pensava que já era sábado - vou deixar o bote o mais perto possível do pronto. Temos sábado para o terminar. Domingo vou a casa da família etíope que me convidou porque quer ter a certeza de que o tripulante está em boas mãos e segunda largo.

Largar - no sentido marítimo do termo, partir, largar amarras - é muito quase de certeza o verbo mais bonito da línga portugesa. Basta ver as suas declinações: «Larga à vante». «Larga a ré». Tudo claro? Vamos. Largar é um complemento de «claro», como em «limpo», «sem obstáculos». «Vamos.» Tudo isto vai acontecer segunda-feira de manhã se o mafarrico não se intrometer, ele que é useiro e vezeiro  em intromissões «sujas», em sujar o que está ou devia estar limpo.  

Nós marinheiros convivemos diariamente com ele. Está em todo o lado, no menor dos recantos, na mais pequena sombra de boa vontade, Como é que dizia o outro? - «O homem põe e Deus dispõe»? Erro, meu caro. O homem põe e o Diabo dispõe. O demo. O CO2. As alterações climáticas. A desigualdade de género. Chamem-lhe como quiserem, a entidade é a mesma: tudo o que se opõe à regular beleza de «Larga!» «Devagar avante.» «Leme todo a bombordo.» O filme passa por mim e eu ainda aqui todo quedo a beber rum com sumo de laranja (estes são melhores juntos do que separados), a ouvir jazz etíope e a sonhar. «Larga!»

Perguntam-nos muitas vezes «O que sente quando deixa de ver terra?» Tabarly respondeu brilhantemente a essa pergunta: «O que sinto quando deixo de ver terra? Nada.» Claro. O momento mágico não é ver ou deixar de ver terra. É quando o último cabo liberta o bote e a máquina é posta em devagar avante, leme a meio e em meia dúzia de segundos «leme todo a bombordo» e depois chega aquele momento, esse sim mágico: «ala que se faz tarde. Vamos!»

Não será bem assim. Tenho de ir a bancas antes de apontar para fora. Mas sim, é assim. Este momento deve ser, para um marinheiro, o equivalente para um crente de esperar ver a Virgem pendurada numa oliveira ou Jesus embrulhado num lençol virginalmente branco a sair do túmulo. 

- São só dois dias, estúpido!
- Sim, mas logo a seguir vêm três semanas, idiota.

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