Domingo é dia de praia, de maneira venho aos piratas em St.-Anne. Viemos no bote, o tripulante e eu, um bocado a arrastar-se. O destino original era a praia de Salines e o meio a boleia mas no último momento mudei de ideia. Não me apetece perder tempo na borda da estrada num dia tão bonito.
Preparo-me para a semana que vem: gelcoat na plataforma, ver se encontro uma solução para o esgoto dos duches, reclamar com a Polymar. Esta última tarefa – que será a primeira amanhã de manhã – será provavelmente inútil, mas pelo menos terei reagido. Mais vale perder do que não tentar. Isto dito, esta merda «interpela-me», entre aspas porque cito e é meio irónico meio dubitativo. A verdade é que gosto de ver o uso nas coisas. Gosto de ver-lhes a patine. Não gosto é de as ver negligenciadas, maltratadas. Uma coisa usada e bem tratada tem mais charme e é mais bonita, para mim, do que uma usada como nova. Ou seja: esta história da mesa do salão irrita-me triplamente. Primeiro por causa da mancha, segundo por me irritar a este ponto e terceiro por não conseguir perceber porque me irrita tanto.
O que aconteceu foi isto: fui à Polymar comprar acetona e outras coisas para fazer
o gelcoat. Na loja pedi um saco de plástico para envolver a garrafa.
Esse conjunto foi para dentro do meu saco impermeável e veio para bordo. Lá chegado
pego no saco de plástico, apercebo-me de que está molhado e penso que é água,
ponho-o em cima da mesa do salão e claro, não era água, era acetona. O frasco
tinha uma fuga gigantesca (enfim, quase) na tampa. Meia hora a lixar com lixa
mil serviu para atenuar bastante a mancha, mas ainda lá está, visível. Voltei
à Polymar para trocar a garrafa e avisar o homem da loja – por sinal bastante
simpático – do caso. Disse-lhe que me vou embora para a semana e que não haverá
tempo para reparar a coisa aqui, mas amanhã vou lá consolidar a reclamação. Não
servirá de nada, repito. A crença nos «actos de Deus» está entranhada no código
genético desta actividade. Mas eu pergunto-me por que raio de carga de água é
que Deus dirige sempre os seus actos contra nós, marinheiros e não a favor.
Raio de Deus este... (A resposta à pergunta é fácil, claro. Isto é retórica de
escapa, mais nada.)
Por outro lado, porque não considerar esta mancha uma simples consequência do uso, a primeira letra de patine? Há várias respostas possíveis. Em primeiro lugar, porque eu sei que o proprietário não partilha a minha opinião sobre a beleza das marcas de uso nas coisas; em segundo porque é resultado não de um uso normal mas de um erro grosseiro. Um garrafa nova e com a tampa ainda por abrir não deve ter fugas daquelas, muito menos num produto como a acetona. Felizmente não tinha o computador no saco e a máquina fotográfica estava dentro do seu invólucro. Em terceiro lugar, porque a mancha não é bonita, por muito ténue que seja. Lembro-me uma vez que deixei um ferro de passar em cima de uma mesa. A proprietária reclamou bastante (e quem sou eu para não lhe dar razão?) Mas a mancha não estava mesmo no meio da mesa e tinha a forma bonita, geométrica, triangular do ferro.
Não sei. Sei que estou fulo e que amanhã o meu dia vai começar com uma luta quixotesca e perdida, passe o pleonasmo. E sei que o restaurante dos piratas em St.-Anne (Pirate's beach) é bonito, que daqui a pouco vou nadar um bocadinho, que depois vou lavar a roupa, a que se seguirá um almoço rápido a bordo e uma sesta reparadora e restauradora. (Nb.: desaprovo inteiramente esta romantização da pirataria, actividade ignóbil praticada por homens - e algumas mulheres, que eram ainda piores - abjectos, hediondos, indignos, vis e tudo o que de repelente e reles a humanidade produziu.)
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O meu corpo abandono-me, escrevi recentemente. Claro que o mais sábio é habituar-me à ideia, que de resto nem sequer é assim tão recente. O meu conhecimento de farmácias, médicos, hospitais e centros de saúde aumentou em flecha nestes últimos seis anos. De Cuxhaven até ao Marin passando por Palma e por Cascais, Lisboa, Coimbra e Porto tem sido um vê se te avias. «Pelo menos ainda podes ir ao médico», dir-me-ão. «Pior será quando não puderes. Isto tem de ser discutido, se possível em presença dos netos, para que a resposta tenha um forte viés positivo; isto é, negativo. Isto é «está calado e cala-te.»
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De vez em quando venho ao Mango. Continua um sítio porreiro se a) não se comer e b) não se esperar que volte a ser o que era: ponto de encontro, agência de trabalho e centro noticioso. O resto continua igual (ou quase. O pessoal era mais simpático e os preços não eram lunáticos). A localização e a decoração que se lhe adequa como rum a uma goela.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.