27.5.24

Derivar e pairar entre palavras

Já aqui um dia expliquei a diferença entre derivar e pairar. Ambas consistem basicamente na mesma coisa - estar no mar sem meio de locomoção - mas a deriva é involuntária e pairar não. Por exemplo: se eu arrear os meus panos, se parar o meu motor, se puser os remos em posição de descanso fico a pairar. Se o meu mastro cair, se o motor avariar, se os remos se partirem fico à deriva. No mar a diferença é clara. Na vida nem tanto. Neste rio de palavras que agora me atravessa - ou eu atravesso -, onduleante como um rio africano, eu derivo ou pairo? Deixo-me arrastar ou é ele que me leva? Do meu bote (vamos imaginar que é uma almadia, em memória das minhas aventuras no rio dos Bons Sinais) vejo as largas extensões de palavras em cada uma das margens. Não sei aonde pus a pagaia - perdeu-se? Caiu? Está no fundo e recuso-me a olhar para ele? Talvez bastasse baixar-me e apanhá-la e dar uma direcção à minha canoa. Talvez não, talvez não esteja lá. Hesito e deixo-me levar pela corrente, fraca porque o rio é largo e preguiçoso, tem demasiados meandros, arrasta muitos sedimentos. Vai pesado. As palavras olham para mim com uma indiferença notável. É como se eu não existisse. Que nome dar a esta assimetria? Eu vejo-as tão bem... Às vezes até me parece que me acenam, me chamam, dizem-me «Pára essa porcaria e vem passear para aqui connosco.» E eu ali, abúlico, sem saber se derivo se pairo, se paro ou se continuo. Penso: «Isto só me acontece com as palavras. Com o mar, por exemplo, não. Sei perfeitamente de onde venho e para onde vou. Só nesta interminável e palavrosa planície me perco.

Interminável, palavrosa e silenciosa. As palavras não falam. 

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