1.10.24

Diário de Bordos - Vila Real de Santo António. Algarve, Portugal, 01-10-2024

Nunca liguei muito ao dia dos meus anos. Antes do Facebook esquecia-me frequentemente dele. Agora é impossível - e embaraçoso: sou notoriamente relapso a enviar parabéns e quando recebo avalanches deles não sei bem como reagir, para além do obrigatório e gigantesco Obrigado a todos!

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O dia começou bem, continuou melhor e acabou comigo a dar uma porrada no cais, coisa que me destrói qualquer réstea de alegria que tenha acumulado. Falhar uma manobra, por difícil ou chata que seja, deixa o meu pobre e combalido ego ainda mais de rastos do que ele já anda todos os dias. Paradoxalmente, é quando elas são fáceis - como a de ontem - que isto acontece mais vezes, prova sem dúvida de que preciso de um banho de imersão numa banheira de modéstia. Ainda há poucos meses foi uma atracação em Palma - que não deixou marcas, ao contrário desta, e era difícil.

Saí de bordo e fui jantar, mas foi uma decepção. Vila Real de Santo António acedeu final e (talvez) subitamente à categoria de porto  detestável - o que é chato porque hoje tenho de cá ficar, devido ao esquecimento de uma carteira num táxi. Les bourdes se seuivent et ne se ressmblent pas? Não: são sempre as mesmas, com excepção das manobras, que felizmente não falho muitas vezes. Aliás: só raramente falho. Se bem ontem tenha decerto perdido o estatuto de sócio honorário do clube dos atracadores do ovo cru, um clube ao qual me orgulho de pertencer. Ontem fui expulso dele e vou ter de lutar pela readmissão.

(Para quem não sabe: põe-se um ovo cru entre o casco da embarcação e o cais. Se ao atracar o ovo se partir a pessoa que manobra não é aceite no clube. A prova deve ser repetida dez vezes com zero falhanços para que a admissão seja definitiva. É independente da dimensão da embarcação - aplica-se a graneleiros, supertanques, navios de pesca e embarcações de recreio.

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Só se deve julgar um restaurante ao segundo copo de rum. Hoje decidi experimentar o da marina. Bacalhau assado com batatas a murro - há que aproveitar a ausência das injecções e usufruir do subsequente apetite. O bacalhau estava bastante mediano - na minha escola primária levaria a nota de suficiente ou suficiente menos se a Dona Eugénia estivesse num dia mau - e o primeiro rum (Barceló) foi servido por um vesgo forreta que o serviu do lado do olho errado. Já o segundo compensava largamente as deficiências e insuficiências anteriores.

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Desde Maio que não estou sozinho a bordo de uma embarcação e muito menos a navegar. Ontem pareceu-me uma viagem ao paraíso, apesar de as putas das orcas estragarem um pouco o prato. Fico doido quando vejo idiotas louvar-lhes a beleza. Pata que as pôs mais a beleza. Elas que vão atacar a vagina da mãe e nos deixem navegar por onde queremos e precisamos de passar.
 
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Escrevo ao som dos Steeley Span, um grupo que me foi dado a conhecer por um soldado inglês num infame, sórdido, bar de Gibraltar quando Gibraltar ainda não era o nojento buraco de turistas em que se metamorfoseou.

(Estudo sobre as interacções da memória e do presente: se tivesse conhecido Gib hoje e não nos anos setenta chamar-lhe-ia nojenta? É pouco provável. Quando muito horrível.)

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Três da tarde. Não vai dar tempo para uma sesta como deve ser. Mais uma vantagem do rum: equilibra a ausência de sesta. PS - O terceiro vem ainda maior. Este sim, foi o almoço do meu dia de anos.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.