10.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-12-2024

Por norma não gosto de utilizar os duches das marinas. Só o faço quando absolutamente forçado a isso, como agora. Há excepções claro: Denia, por exemplo. Aquilo é um luxo e quando lá vou uso os duches do porto mesmo sem uma razão forte.

Não se aprende muito nos duches ou só raramente. Em Brighton vi um tipo a barbear-se como eu, ainda todo ensaboado e completamente nu, o que me levou a pensar que enrolar uma toalha à cintura nem sempre é má ideia. Ali andava tudo nu na casa de banho e os mastros estavam cheios de bandeiras com as cores do arco-íris, verdade seja dita. Em Denia não é preciso andar em pelota nos espaços comuns: cada duche é um apartamento em miniatura, exagerando pouco.

Hoje - contudo, porém, todavia - o meu duche matinal foi uma experiência notável, alegre e uma novidade. Na cabine ao lado da minha um senhor pôs o telefone a tocar música aos berros e começou a cantar ainda mais alto, uma espécie de karaoke duchal, tão mau como o outro mas muito mais rico em novidade. O homem elevou o conceito de cantar no duche a um nível difícil de igualar (nível nos dois sentidos: o sonoro e o da qualidade do acontecimento.  O do canto nem tanto).

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Último dia como skipper do P. Fiz o handover (termo técnico. Não tem tradução para português,  M.) ao R., que me vai substituir, acolhi a A. que vai fazer boat sitting (ditto), deixei a burra no armazém e vim comer à Cantina.

M. não gosta deste clube. Eu adoro-o. É verdade que com a possível excepção de Cascais - a pior marina do hemisfério norte e arredores - nunca estive tanto tempo no mesmo porto. Os amores correspondidos são os melhores, não são? São. 

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(Continuação)

Avião Barcelona - Lisboa

Reacção! Reacção! Jacto! Estes aviões andam a passo de caracol, essa é que é essa. E cada vez mais devagar, ainda por cima. Por cima de Espanha, que nunca acaba qualquer que seja o meio de transporte: carro, barco ou avião este raio deste país demora uma eternidade até acabar.

Dá tempo para os hospedeiros venderem perfumes, relógios e outras bugigangas. Só não vendem é sono, a única coisa que me apetece. Nem um minuto. A porcaria dos bombons comidos no aeroporto pesa-me no estômago. Porcaria é maneira de dizer, claro. São bons que se fartam. Vêm de um stand chamado Chocolate Factory, em catalão moderno. Comi cinco, se não estou em erro. Pergunto-me se a explosão de açúcar foi equivalente às de Hiroshima e Nagasaki combinadas e concluo que não. 

A rapariga do lado também não consegue dormir. Tem nas orelhas aquelas coisas que fazem as pessoas assemelhar-se a elefantes anões mas sem a inteligência dos bichos. Deve estar a ouvir música porque de vez em quando acende-se uma luz azul, a piscar como as luzes dos carros da polícia. Olho para ela de soslaio, furtivamente, não vá ela fazer-me aquilo que pus a personagem de um conto que estou a escrever a fazer. Espero acabá-lo depressa. É um conto pedagógico. 

Pela janela vejo aldeias, relativamente próximas umas das outras. Irrita-me não saber aonde estou mas não pago para ter wifi a bordo. Só faltam quarenta minutos para chegar. Gosto de seguir os voos nos ecrãs, mas estes aviões de pequenas distâncias não os têm. Quando penso no que me chatearam por não desligar o telefone!

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Lisboa

Recepção tradicional: um chauffeur de táxi que tenta enganar-me - debita-me um euro e sessenta cêntimos pela mochila. Pago-lhe a totalidade do que ele me pede e explico-lhe que ficou a perder: nestes trajectos curtos costumo deixar uma gorja maior. "Mas já que o senhor se auto-atribuiu a gorjeta, fica assim." Estes gajos não aprendem, nada a fazer. E eu entrei no carro a mencionar a Uber, para o ajudar a perceber. Não percebeu. Devo dizer que até tenho um certo respeito - ou será inveja? - pela profissão de taxista.

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Jantar no Portofino, pela primeira vez. Pode talvez argumentar-se que o acto inaugural é o melhor - hipótese que não compro - mas algo me diz que as próximas vezes (haverá muitas, Deus querendo) serão tão boas como esta.

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Portugal: no táxi vim a ouvir um programa de futebol. Não quis pedir ao homem que mudasse porque o trajecto era curto. No restaurante, uma mesa próxima fala de futebol.

Depois admiram-se de ser governados por Costas,  Montenegros, Marcelos e afins.

(Cont. ?)

Sim, continua.

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Acabo no Távola. Não sei se é inevitável - aceitá-lo seria aceitar que não tenho juízo nenhum, coisa que essa sim, me parece inevitável - mas sei que chegar a Lisboa e não parar aqui a caminho de casa é pecado mortal.

Uma cantora excepcional, o puto do baixo - Romeu ou Romão ou coisa que o valha cada vez melhor (conheço-o desde o glorioso café Tati no Cais do Sodré) - um guitarra tão bom como os outros. O bateria não me seduziu por aí além. On s'en fout.

"Ladies and gentlemen, you are floating in space", dizem os Spiritualized. "Luisinho, estás a flutuar em Lisboa", digo eu, que me conheço de gingeira e sei vet quando a árvore está carregada de frutos maduros, pulposos, a rebentar de sumo.

Está. 

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