É porém forçoso reconhecer que F. nunca desenvolveu uma visão coerente do mundo. Para ele, a realidade era um caleidoscópio com metade dos espelhos partidos e a outra metade fora do lugar. Impossível extrair dali qualquer espécie de sentido, por mais que girasse o engenho. F. não encaixa na visão ordenada de quem acredita que o mundo tem uma ordem e menos ainda na de quem não acredita em caleidoscópios, funcionem correctamente ou não. Múltiplos eixos de simetria ou ausência total deles. Nos seus piores dias, F. via-se ele próprio como o eixo de simetria, torto, aos èsses, que ao girar criava formas aleatórias da realidade. Com essas formas construía alegorias, frágeis edifícios que raras pessoas viam e nos quais muito menos acreditavam. Nos seus dias bons, escassos, não se dava sequer ao trabalho de se ver a si próprio. Os espelhos internos e os externos obscureciam-se e proporcionavam-lhe os poucos momentos de felicidade que ao longo da sua vida ia conhecendo. Foi a partir desses momentos fragmentados que a analogia do caleidoscópio quebrado lhe ocorreu. Por vezes interrogava-se sobre a origem da luz que lhe permitia ver as míriades de pequenas imagens desconexas que formavam os seus mundos, diferentes todos uns dos outros pois variavam com as inúmeras disposições dos fragmentos de espelhos no interior do tubo. F. não acreditava que essa luz tivesse uma origem. "Existe porque sim", dizia.
"Como eu, de resto, que vejo os mundos que faço e faço os que vejo."
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.