Saio de casa do V. e a chuva não era sequer de molha-tolos. Mal chegava a molha-tolinhos, de maneira vim por essa Almirante Reis abaixo e só parei na Confeitaria Nacional para uma bica e um pastel de nata. Cada vez mais me sinto em Lisboa como um turista. Pouco a pouco a cidade afasta-se de mim - ou afasta-me, isso resta por esclarecer. Ele é buzinadelas, ele é obras, ele é gente e mais gente, ele é ruas com pavimentos mais adequados a bicicletas de montanha do que burras urbanas como a minha, ele é esta desafeição que pouco a pouco me entra pelos poros todos da pele. Claro que pode sempre contra-argumentar-se com o Roda Viva, pequena pérola nos limites de Alfama, ou com o Arcos de Paris, ou com a Confeitaria Nacional, resistente e linda como sempre; pode sempre argumentar-se com um montão de coisas porque a nossa ligação a uma cidade não se resume a restaurantes, é feita de pessoas e de paisagens, de memórias, de vidas. Enfim, isto não é um tratado sobre a pertença e muito menos sobre o desenraizamento. É sobre este sentimento estranho de me sentir turista na cidade que sempre amei e aonde nunca vivi muito tempo, talvez a contradição mais perene da minha vida: amor e distância andam juntos em mim desde a adolescência.
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Faço uma pausa no Porto sem nenhuma razão muito forte mas com bastantes fraquinhas - pelo menos em termos de expectativas. A energia e o optimismo - a certeza, por assim dizer - que punha em tudo desvaneceu-se, substituídos por um abulismo consciente, voluntário. O que for será; mover as bolas na mesa de bilhar com pequenas e espaçadas tacadas. Cépticas, sobretudo. Os buracos na mesa mexem-se, qualquer pessoa com mais de cinquenta anos sabe-o. E se não sabe devia saber.
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No comboio há duas pessoas nas minhas redondezas a falar ao telefone. O que eu lamento a falta de carruagens «silenciosas», como há (ou havia) em França. Por que raio de carga de água não se levantam e vão falar para o espaço aonde não há ninguém? Se calhar, não são apenas carruagens «silenciosas» que faltam.
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Desta vez não tive sorte e não consegui mudar para primeira classe. O revisor não estava muito contente com a ideia mas lá acabou por ir «verificar» e não havia lugares. Escrevo um bocadinho apertado e rodeado de senhoras (enfim, duas) a falar ao telefone. Paciência, como dizia o Job, coitado.
(Cont.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.