Números, adjectivos, vida.
Força quatro ou cinco pela alheta, amurado a bombordo, sete nós no fundo, frio por enquanto suportável (näo tenho termómetro, este vai de adjectivo), Lua em minguante quase a chegar ao quarto, visibilidade boa, nebulosidade cinco (em oito, para quem não sabe e quer saber) sobretudo cumulus ou já estratificados ou em vias disso, mar de pequena vaga, proa ligeramente a sul do rumo porque não posso ou näo quero arribar mais. Acabamos de fazer sete horas a motor porque não havia vento mas agora voltou, entrou norte como estava previsto. E entrei eu de quarto, igualmente previsto: esperam-me duas horas e meia disto (se o vento leu a previsão. Se näo leu, a noite muda e eu com ela). Não dormira praticamente nada desde a largada mas agora desforrei-me: quase sete horas de sono interrompidas apenas duas vezes para vir à ponte, ver como estava a primeira, apagar o motor e ajustar os trapos a segunda. Quando sair de quarto continuarei a desforra.
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O bote já de si é um tamanco e vai carregado, o que explica a pouca velocidade e a muita água que arrasto pela popa. Fui calçar um par de meias e vestir o casaco de mar. Há algumas dezenas de anos (poucas) tive aquilo a que em francês se chama veste de quart. É um casacão não necessariamente impermeável - a sua função é aquecer. Este que me vem à memória tinha uma folha de alumínio no meio das diferentes camadas de tecido. Dizer que era quente é dizer pouco. Foi a melhor coisinha que me passou pelo corpo e o aqueceu. Nunca mais encontrei nada parecido. Ainda durou uns bons anos. Penso nele cada vez que estou de quarto à noite e tenho frio.
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O quarto continua: fui lá abaixo fazer café, não encontrei e fiz cacau, que me deixou mal disposto. O vento rondou a nordeste e tive de cambar. Uma das poucas coisas de que gosto no Bali é o sistema de escotas da grande. Transforma qualquer cambadela qualquer que seja o vento numa cerimónia de chá das cinco para senhoras da alta sociedade. Continuo mal disposto. Ou o cacau é manhoso ou bebi-o demasiado depressa, a pensar que tinha de cambar e a perguntar-me se no Mindelo encontrarei uma loja de café decente. Nunca se sabe. Em Barbate há uma. E em Arrecife há uma livraria. Tal como no Pico, Deus meu, quem pensaria encontrar uma livraria decente no Pico? Ainda por cima é também editora e vai publicar o meu próximo livro, Não Sei. Avenida da Liberdade, n° 1, De Passagem, Não Sei. A sequência soa bem, não soa?
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A má disposição não passa. Raio do quarto começou tão bem e agora isto. Orço um bocadinho, caço o estai e penso que quem olha para as derrotas dos veleiros deve achar que não sabemos para onde vamos. Sabemos e não é para onde nos leva o vento. É para onde queremos ir.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.